Acho que estou ficando masoquista. Quando publiquei aqui, faz muitas semanas, minhas objeções aos pombos urbanos, recebi cartas odientas de tudo quanto foi canto do Brasil, algumas, se bem me lembro, lamentando que, no nosso País, não se use a guilhotina ou a cadeira elétrica para canalhas como eu. E eu só falei algumas verdades (mentiras, mentiras!) conhecidas sobre pombos, a principal das quais é que defecam sobre as cidades que infestam, causando doenças e deterioração do patrimônio artístico exposto ao ar livre. Tudo bem, viva a democracia e a liberdade de convicção e opinião. Mas mandaria a prudência que eu não falasse mais sobre o assunto, pois um columbófilo (imagino que este seria o nome apropriado para o amante de pombos) pode exaltar-se em demasia e jogar um coquetel molotov aqui na portaria do edifício onde resido.
Mas não resisto, levado pela imprudência própria de escritores e afins. Recebi de um leitor, que, judiciosamente, prefere manter-se no anonimato, a seguinte receita, que recomendo à grande parte faminta de nosso povo e transcrevo sem citar o nobre autor, por desconhecer seu nome. Vai como chegou, inclusive em sua forma de soneto livre, que tomo a liberdade de considerar literariamente interessante. Ingredientes:
Quatro pombos.
Vinha-d'alhos feita com vinho branco.
Os miúdos dos pombos picados.
Duas colheres de sopa de manteiga.
Duas fatias de pão molhadas em leite.
Cinqüenta gramas de presunto.
Um ovo cozido.
Pimenta-do-reino.
Sal.
Claro que, conhecendo as condições aquisitivas do nosso povo, imagino que o vinho branco pode ser substituído por cachaça, o ovo (no caso, quatro ou cinco) por ovos de pombo mesmo, a manteiga por óleo usado de um boteco amigo e assim por diante. Eis aqui o soneto:
Os pombos limpos vão ficar de molho na vinha-d'alho cerca de três horas.
Aos miúdos refogados na manteiga, misture pão, presunto, ovo cozido.
Tempere com pimenta e sal a gosto esta massa que vai encher os pombos.
Amarre asas e pernas com barbante e leve todos eles à panela.
Com alguma manteiga derretida, asse, regando sempre com o molho, até que a carne fique bem macia.
Retire da panela, corte ao meio, e sirva acompanhando arroz soltinho.
Este pombo é melhor que dois voando.
Pronto, já estou à espera dos coquetéis molotov, implorando apenas que avisem os moradores aqui do prédio, porque imagino que a maioria dos columbófilos — não todos, bem entendido — valorize mais a vida humana do que a dos pombos. É intrigante como gente que come galinha e carne de boi se revolte quando se trata de pombos. A pobre da galinha, que, se, de repente, sumisse da face do planeta, levaria com ela boa parte da humanidade, é definida, num folheto qualquer do Departamento de Agricultura americano que li em algum lugar, como "um sistema destinado à conversão de proteína vegetal em animal" (ou seja, nem bicho ela é mais), não está com nada, vamos a ela.
As galinhas de granja, que não fazem mal a ninguém, são debicadas, injetadas com hormônios e antibióticos e confinadas num espaço consideravelmente menor do que o que a permitiria olhar para trás (se bem que ela não precise), devem passar para nós não só as drogas que lhes impingem como a neurose em que vivem. No entanto, ninguém as defende, enquanto essa pestilenta (tudo eliminável pelo cozimento) praga de pombos é tida como uma alegria de vida, apesar de uma sopinha de pombo poder ser responsável pela sobrevivência de um compatriota que dorme embaixo de um viaduto.
Quando escrevi uma paródia de Jonathan Swift (escrevi com cara de sério), sobre o texto que ele fez, a respeito de resolver o problema da fome através da matança humanitária de criancinhas irlandesas, ninguém protestou. E olhem que escrevi sobre crianças nordestinas, com zero teor de gordura e colesterol! Comem-se cachorros na Tailândia, cobras igualmente, sarigüês na Bahia, e comem-se — atenção, comida de gourmet! — formigas e cupins. Se você tem uma praga de cupins em sua casa, não é necessário chamar exterminadores. Com um pouco de atenção, é possível distinguir as fêmeas reprodutoras, que geralmente são muitíssimo maiores, em alguns casos 20 mil vezes, que os outros membros da comunidade, e de corpo escuro. Quando uma reprodutora morre, fabricam logo outra, para tomar o seu lugar. Melhor, porque o suprimento demora para acabar. Come-se com uma espécie de molho vinagrete, preferivelmente com ela ainda viva. Custa uma fortuna e há turistas na Ásia que tornam isso uma experiência de bom gosto extraordinária.
Comem-se cupins, mas não se pode comer um pombo. Protesto, mais uma vez. Se o amigo ou amiga se recusa a dar dinheiro a um mendigo porque sabe que ele vai transformar o dinheiro em cachaça, dê-lhe um pombo. E quem lhes fala sabe do que está falando, pois minha avó paterna era caeté e, como se sabe, nós, caetés, comemos um bispo português. Comer bispos portugueses está um pouco fora da moda, mas matar a fome dos mendigos com pelo menos um pombo grelhado não devia estar.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 09/08/1998.