Às urnas, citoyens!

(João Ubaldo Ribeiro)

Hoje, devemos votar. Somos obrigados por lei a votar. É melhor do que ir às armas, como exorta o hino nacional francês, parcialmente citado no título acima. Claro que, se a lei não nos obrigasse, a maior parte de nós iria à praia ou ao boteco, conforme a inclinação de cada um. Mas é bom votar. Aprendemos que votar é essencial para a manutenção de Estados democráticos (não é, mas estou com preguiça de rememorar os tempos em que era professor de ciência política e achava que esse tipo de discussão era sério) e, portanto, votemos.

Desde menino, assisto e participo de eleições. Meu avô materno era coronel do interior e político, meu pai era político. Meu avô era um tanto volúvel em suas preferências e usava seu poder de coronel para mandar os eleitores votar em quem ele queria. Meu pai era jurista, sempre foi pessedista (nem sei nem se devia dizer isto em público, pois posso provocar irritação em meu admirado amigo e confrade de Academia Oscar Dias Corrêa, udenista de dezoito costados, que, revoltado, é capaz de deixar de me dar conselhos para eu parar de aparecer andrajosamente na dita Academia) e tinha como especialidade anular brilhantemente as urnas em que a UDN vencia, em Sergipe. Portanto, possuo vasta experiência em nossa democracia.

Em Itaparica, feudo do coronel Ubaldo Osório, meu avô, a democracia entrava em efervescência frenética mais ou menos uma semana antes das eleições. Usavam-se chapas, ou seja, papeizinhos com o nome do candidato impresso. Analfabeto não podia votar, mas isso não constituía obstáculo, pois armavam-se exércitos de cabos eleitorais — expressão hoje lamentavelmente esquecida — para ensinar os eleitores a desenhar os nomes. Chapa na mão, desenho aprendido, os analfabetos já votavam desde aquele tempo, o que mostra que certos progressos eleitorais não são tão recentes assim.

Outros elementos democráticos também eram de singular importância. Creio que, até hoje, nossos historiadores econômicos não avaliaram a importância da democracia para o desenvolvimento da indústria nacional de sapatos. Inconcebível, naquela época, votar descalço (hábito inexplicável de nossa população rural, é por essas e outras que continuamos um bando de jecas-tatus) ou de tamancos. Havia gente que até mesmo insistia em votar de paletó e gravata, embora, felizmente para a economia de meu avô, fosse minoria. Sapato, não, sapato era indispensável. Para aliviar a despesa, havia rodízio de sapatos e ninguém fazia muita questão de que o número fosse o certo. Havia mesmo aqueles que, para manifestar sua inabalável fidelidade ao coronel, mostravam os calos de outras eleições, em que haviam usado, patrioticamente, sapatos de números inadequados.

Houve diversas outras ocasiões em que fui levado a admirar eleições e democracia. Essa tal de cesta básica, de que hoje tanto se fala, por exemplo. Migalhas como essas não tinham nada a ver com o que se oferecia nas eleições. Galinha, diz você? Peru, digo eu. Carne seca, lembra você? Filé, lembro eu. Costela de porco, sugere você? Pernil, sugiro eu. Moqueca de manjuba, arrisca você? Moquecona de vermelho, garanto eu. Claro que isso não podia durar o ano todo, nem coronel é de ferro, mas durava, enquanto durava o processo democrático.

E quanto à distribuição de renda, vocês, de gerações mais jovens e meros caras-pintadas, que sabem do que ocorria? Ninguém sabe nada. Senhoras de ares piedosos cortando notas de cem qualquer coisa (perdão pela imprecisão histórica, mas já peguei dos mais velhos o tostão e o mirréis, para não falar no cruzado e no inderrubável real; há um limite para a memória monetária), cujas metades os beneficiários da democracia receberiam depois de contados certinhos os votos de cada seção, até porque os mesários e fiscais, que também tinham sua justa parte na distribuição de renda, apresentavam relatórios irretocáveis sobre quem tinha sido infiel e ficava lá com sua nota cortada, para deixar de ser antidemocrata.

E quanto à malha viária nacional? Quantos coronéis telegrafavam para governadores se queixando de que tinham quatro caminhões de eleitores, mas as estradas eram intransitáveis? Como a democracia poderia perder quatro caminhões de eleitores garantidos, diante de tal negligência? Não foram um, nem dois, nem cem, nem mil municípios e distritos brasileiros que deixaram de beneficiar-se com o conserto das estradas, ainda mais que era só jogar umas carradas de barro nelas, enquanto a democracia rolava. Depois, as estradas voltavam a sumir nos matos, mas aí a democracia já estava atendida. Às urnas, cidadãos! Neste domingo, provemos que a democracia não depende de o candidato ser bonito, ser charmoso ou gastar o dinheiro que ganhou não se sabe onde, para se eleger. Disse Churchill que a democracia é uma eme, mas não existe melhor regime do que ela. Boa verdade, votemos. Não há político entre nós que não diga que sua vida é um sacrifício só. No entanto, eles não querem desgrudar-se do poder, são todos uns abnegados. A democracia baseada nas eleições se funda na patentemente falaciosa presunção de que somos todos iguais. Não somos. Uns poucos são mais iguais do que outros. Se fôssemos iguais, o método certo seria o sorteio. Votemos, mas eu, um democrata de quase seis décadas, prefiro, como alguns gregos antigos preferiam, o sorteio. Não somos iguais? Então sorteemos. Assim seríamos governados por nós mesmos. Claro, claro, não acredito nisso, prefiro as eleições. Agora, democracia? Cadê o sapato do compatriota que hoje encontrei em cima de um papelão, aqui no Leblon?