Pronto, estão todos eleitos ou reeleitos e o rondó do poder começa outra vez. A maior parte de nós fica intrigada com o fato de que todos os que assumem o poder, em qualquer de seus escalões, não cessam de falar nos sacrifícios ingentes a que são obrigados a submeter-se, sacrificando saúde, família, lazer, privacidade, gostos pessoais, rendimentos e tudo mais que torna a vida menos dura. E explicam: é o anseio de servir ao povo e a ideais sublimes. Espírito de sacrifício, vocação, altruísmo mesmo. Em alguns casos, deve ser verdade, mas, no geral, a gente sabe que não é, ou a imagem dos políticos não seria a que tem deles o povo brasileiro. Quase todos engordam (é impressionante como o poder engorda, basta cotejar fotografias antigas com atuais) e ficam bem melhor de finanças, havendo gasto na campanha muito mais do que ganham exercendo o poder. O poder engorda, que é que se vai fazer?
Mas seria certamente injusto dizer que todos, ou mesmo a maior parte, disputa o poder com a intenção predeterminada de se locupletar. Imagino até que alguns se locupletam meio sem querer, é uma espécie de side benefit, um efeito colateral do exercício do poder. Vai-se indo, vai-se indo e, daí a pouco, está-se rico, ou consideravelmente remediado. Não sejamos demasiadamente severos com o nosso semelhante. Afinal, como de vez em quando repito aqui, os governantes (Executivo, Legislativo e Judiciário, como prestimosamente aclarou minha ignorância uma recente carta de leitor) não são marcianos, são gente como nós, amamentada no seio da mesma mãe gentil.
Para desgosto de muitos de vocês, estou passando por nova crise masoquista e voltei a soltar uns latins, que, inevitavelmente, me rendem cartas indignadas de latinistas insultados pela minha insipiência. A força da neurose, contudo, é mais potente do que a prudência e eis que me lembro do bom e velho Publius (prenome incerto, possivelmente fruto de fofocas da época, com Domiciano ou Tibério) Cornelius Tacitus, que, nos Anais, escreveu que "cupido dominandi cunctis adfectibus flagrantior est", ou seja (misericórdia, latinistas!), "a ânsia pelo poder queima mais terrivelmente do que todas as paixões combinadas" — difícil de decorar mais de grande sucesso em reuniões intelectuais, experimentem. E, mais ainda, nas Histórias, "omnia serviliter pro dominationi" — "seja escravo de tudo, pelo poder" (mais misericórdia ainda, latinistas, acho que esse serviliter aí não está muito bem traduzido, cartas para o editor desta página, é ele que me deixa escrever besteiras).
Mas, via Tácito, vocês pegaram o espírito da coisa. O poder político devia ser classificado como droga, com retenção de receita, dessas brabas mesmo. Não me esqueço de uma entrevista que presenciei, com o dr. Antônio Carlos Magalhães, faz muitos anos, no Palácio de Ondina, a que já me referi aqui, há um par de anos. O entrevistador fazia o que podia para provocá-lo, mas ele, olimpicamente, encarava tudo como as penas de um pato encaram água. Até que, às tantas folhas, resolveu fazer uma revelação.
— Isso tudo o que você disse é besteira. Eu podia até ter roubado, mas isso não me interessa. Você quer saber do que eu gosto mesmo?
— Quero.
— Eu gosto mesmo é de chegar nos lugares, nas cidades, onde for e todo mundo parar e olhar para mim: "É o governador, é o governador!" Eu gosto que me carreguem, eu gosto que me dêem mais atenção do que a todo mundo, eu gosto de ver o povo gritando meu nome, eu gosto é do poder! Entendeu você? Eu gosto é do poder! Eu não bebo, não fumo, não curto barato nenhum, a não ser o poder! É disso que eu gosto e é disso que eu vivo, o resto para mim é bobagem. Pode publicar, eu assino embaixo, é a pura verdade.
Pois é. Acredito nele. E sei do poder do poder, com perdão da expressão. O poder, para muita gente, é tudo. Por ter a natureza meio arredia e não gostar de freqüentar altas rodas (quando me chamam, o que não é tão comum assim), não posso dar muitos exemplos, mas os paroxismos de puxa-saquismo que já presenciei, em todos os níveis, são, em grande parte, tão indescritíveis que não os descrevo, para não passar por mentiroso. Conto só um, o da risada. O puxa-sacando estava contando uma história que o puxa-sacante julgava ser uma piada. Aparentemente não era, porque o puxa-sacando pareceu meio chateado, quando o puxa-sacante riu em estertores. O puxa-sacando fez uma cara severa. O puxa-sacante imediatamente deixou de arfar e segurar a barriga, assumindo uma cara compungida. Mas aí o puxa-sacando continuou a história e ficou patente que sua irritação se dera porque o puxa-sacante rira na hora errada, antes do fim da piada. E, instado pela expressão facial do puxa-sacando, o puxa-sacante voltou a morrer de rir. Puxa-sacando perdoou e ficou feliz.
Já vi muito esse tipo de coisa acontecer, fui meio criado entre políticos. O poder realmente é como uma espécie de droga, sem a qual há quem não possa viver, ou definhe como um doente terminal. Estamos começando a viver mais uma estação de troca ou reafirmação de poder. Tudo bem, vamos ter compreensão com os viciados. E vamos esperar que eles usem o poder um pouco para nós, os que não temos a doença. Vamos rezar, aliás. Porque, apesar das radiosas promessas habituais, me assalta a impressão de que o ano que vem não vai ser moleza para ninguém, a não ser para os mesmos — e olhe lá.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 01/11/1998.