Ai que saudades tenho da Bahia

(João Ubaldo Ribeiro)

As saudades começaram a diminuir, um bocadinho só, na hora do vôo, quando a gente entrou no possante Airbus da Vasp e demoramos, num calorzinho bastante respeitável, cerca de 20 minutos na pista. Já achávamos que íamos partir, quando aquela voz que sempre me faz temer bombas a bordo ou turbinas em fogo saiu pelo intercom e anunciou que, devido a problemas com o centro de controle, íamos demorar mais uns 20 minutinhos. Uma das comissárias de bordo, não sem certa dificuldade, abriu uma das portas de emergência. Estremeci. Em primeiro lugar, por que, apesar de ainda estarmos no solo, ela tinha aberto uma porta de emergência? Em segundo lugar, se uma comissária de bordo treinada porfiava daquele jeito para abrir a porta, imagine-se um de nós. Dei uma nova rezadinha e apertei minha medalhinha de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Será que viajaríamos de janela aberta até Salvador?

Mas não, era só para ventilar o avião, porque uns gordinhos já estavam começando a ter chilique com o calor.

Finalmente, eis-nos singrando os ares. Baixaram aquelas telinhas, onde mostram os procedimentos de segurança. Na nossa, não se via nada, parecia o antigo Cine Itaparica, quando o gerador da prefeitura estava ainda pior do que de costume. Não, pensando bem; o gerador da prefeitura era bastante mais eficiente. Pelo menos, na flor de nossa juventude exacerbada por mulher, dava para ver as pernas de Silvana Mangano no filme Arroz Amargo ("ai, ai, ai!", ouvia-se por todo o cinema, entre protestos indignados de pais de família — não quero nem lembrar o que acontecia entre aquela juventude briosa) e, na telinha do avião, não deu para ver nada boa parte do tempo, muito menos as coxas de Silvana Mangano. Fui ao banheiro, o assento do vaso estava solto, despencando para lá e para cá. Falei com outra comissária e ela, com um sorriso charmoso, me respondeu, como se não tivesse nada a ver com o avião e eu mesmo devesse resolver o problema chamando um bombeiro hidráulico, ou qualquer coisa assim: — Problema de manutenção — e eu gostei do sorriso dela, mas fiquei imaginando aquele assento voando de um lado para o outro dentro do banheiro e outras coisas não tão simples também voando e o resto da viagem, inclusive o jantarzinho mais tarde servido (o meu disseram que era peixe, mas no duro que era jibóia).

De resto, somente um turbulenciazinha, para dar mais graça à viagem. Mais medalhinha do Perpétuo Socorro, enquanto o grande pássaro de prata batia asas como um jaburu ensandecido e uma senhora a meu lado se persignava com grande afinco. Se não me engano, a comissária sentada quase em frente a mim estava um pouco pálida, talvez preocupada com a possibilidade de ter de abrir a porta de emergência, ou comer do jantarzinho oferecido. Contudo, o astral a bordo clareou bastante, ao entrarmos nos céus claros do Nordeste e nos aproximarmos da luminosa cidade da Bahia. Antes, contudo, precisávamos pousar. Mais medalhinha do Perpétuo Socorro, mais persignação por parte da senhora ao lado e — ninguém me tira isso da cabeça — mais palidez da simpática comissária à minha frente. Mas nosso bravo piloto, que certamente não tinha visto nem a projeção das instruções de segurança, nem o assento do vaso peregrinando como um cometa no banheiro, botava fé na sua manutenção e desceu com toda a confiança e competência. Pronto, já estávamos na Bahia.

Por que resolvi de repente vir à Bahia, em cujo chão fazia tanto tempo que não pisava? Já contei aqui a vocês que me tornei um velho caturra em relação a Salvador, começo a me irritar com as mudanças, quero chamar tudo pelos nomes antigos, não sei mais andar em lugar nenhum, quero freqüentar restaurantes há muito finados, quero que as moças de meu tempo estejam com a mesma aparência louçã — enfim, me torno um chato de quatro costados, reclamando de tudo e dizendo que no meu tempo tudo era melhor. Por que, então, volto? Para encher o saco dos amigos? Imagino que sim, embora estejam todos uns velhotes como eu e nosso papo deva ser insuportável para qualquer pessoa abaixo dos 30 anos (em quem não confiamos, aliás; não confie em ninguém com menos de 30 anos).

Vim, também, respirar uns ares antigos, ver a família e ter umas crises de choro brando, passando pelos lugares que conservam mais ou menos a mesma cara, ou que não conservam, mas estão povoados por meus fantasmas queridos. Estou com uma overdose leblonina e a tendência é de que, se eu deixar as coisas no mesmo passo, não saia mais dos quatro quarteirões em torno de meu prédio no Rio. Está virando vício, esse negócio de não sair. Vou ficar aqui um mês e vou sair. Bem verdade que já se passaram vários dias e eu ainda não botei os pés fora da casa de minha irmã, onde estou hospedado. Mas eu saio, eu juro que saio, pretendo passar uns 30 dias aqui e não é possível que eu não saia.

E tem umas comidinhas também. Minha família é boa de prato (o que, pensando bem, significa que não preciso sair para comer, mas eu saio, eu juro que saio). Eu mesmo não envergonho numa boa moqueca, nuns mimos selecionados, numa ambrosia de respeito. Acho que vou convidar Juliana, antiga cozinheira minha e hoje grande amiga do peito (ela vai me gozar, ela sempre me goza, quando eu cozinho junto a ela, mas eu tenho espírito esportivo e, além disso, acabo deixando tudo a cargo dela, não valho nada) para fazermos umas parceirias, aqui na casa de minha irmã.

Depois a gente sai, tem tempo. E esse negócio de comida baiana requer grande dedicação, inclusive a dormidinha de quatro ou cinco horas, depois do almoço.

Sim, há muitas razões para vir à Bahia. Mas a principal delas, penso eu, enquanto passo pela orla aromada perto de Itapuã, é a mesma de Caymmi. Ai que saudades tenho da Bahia.