Bahia, urgente!

(João Ubaldo Ribeiro)

Imagino que meu pauteiro deve estar um pouco chateado, mas manda a honestidade reconhecer que ainda não botei os pés fora de casa.

Tenho, porém, explicações honestas e convincentes, que só uma pessoa de muita má vontade deixaria de levar em conta. Em primeiro lugar, o computador de meus sobrinhos, que no momento utilizo, é uma máquina diabólica, que não faz nada do que eu mando e, ao menor toque equivocado, exibe imagens salazes de senhoras desnudas em posições ou atos de abalar o próprio Santo Antão. "Valei-me, meu Santo Antão!", grito eu, mas, infelizmente, não disponho, como o bravo santo, de uma boa moita de espinhos para nela espojar-me e assim exorcismar as tentações da carne. Creio que o leitor compreenderá o transe que atravesso, é muito difícil cumprir meus deveres nestas condições.

Ah, nem lhes conto (e não vou contar mesmo, este é um jornal de família; só vou contar o suficiente para vocês ficarem roxos de curiosidade) o vídeo que mandaram para um sobrinho mais velho.

Aconteceu que uma famosa atriz da televisão americana andou fazendo uns teipes dela com o namorado. Que equipamentos! Que criatividade! Que trilha sonora! Que tomadas de fazer inveja ao mais ousado diretor! Pois bem, assaltaram a casa dela e, entre outras coisas, furtaram as fitas.

Não contentes com isso, botaram as fitas na Internet e, de vez em quando, lá estou eu, diante das mirabolantes cenas. Não é que eu goste dessas coisas, mas a cara de menina inocente (embora durona) que ela faz no programa me impele a não resistir ao contraste e confesso que já dei umas assistidazinhas. Na volta ao Rio, eu vou à igreja aí no Leblon e me confesso, garanto a vocês, ninguém é perfeito, nem mesmo eu.

Além disso, o elenco de assuntos e tarefas que desafiam meus parcos dotes jornalísticos é verdadeiramente hercúleo. Sob alegações que creio um tanto mesquinhas ("ele vai é pro Pelourinho, se entupir de acarajé e batida de pitanga", "ele nunca mais volta", "ele vai é entrar pra um candomblé e ficar lá para sempre" — essas coisas preconceituosas), não deixaram que um fotógrafo viesse comigo e como posso assim descrever a safra de pimentas do jardim de minha irmã? Se vocês pensam que já viram pimentas, estão enganadíssimos. Malagueta, dedo-de-moça, tudo isso é capim por aqui. E as que parecem umas rosas de tamanho médio cujo molho minha irmã não me deixa provar, em razão de intervenção cirúrgica a que recentemente fui submetido e que pode me levar a nova internação, desta feita no Corpo de Bombeiros? E as de todos os matizes, que se espalham pela orla das plantas maiores e requerem horas de cuidadosa e enlevada observação? Não é assim com uma semana ou duas que se pode falar dessas pimentas e ficam querendo que eu faça isso. Não faço, não sacrifico meus princípios.

Há também os meus amigos históricos. Alguns já estão aposentados, mas, com essas magníficas aposentadorias que pagam aos nossos trabalhadores, são obrigados a continuar no batente, de uma forma ou de outra. Contudo, minha presença na terra lhes oferece esplêndidas desculpas para faltar ao trabalho. Um deles me contou a descrição do meu estado de saúde, que quase leva seu chefe às lágrimas e lhe obteve licença para um dia inteiro de ausência. Conhecendo a imaginação e o talento deles, a esta altura já devo estar com um pé na cova. Não preciso, portanto, sair para vê-los. Fico aqui, moribundo, tomando suquinho de cajá e rememorando os velhos tempos. Como sair para procurar novidades lá fora, desfeiteando os amigos e me cobrindo de remorsos, assim como Aquiles se cobriu de cinzas à morte de Pátroclo?

Não posso fazer isso, ninguém pode exigir isso de mim. Em conseqüência, mais um obstáculo intransponível para sair de casa.

E os problemas existenciais? Trouxe minha sunga, pois pretendia fazer denodados exercícios na piscina, eis que sou um dos poucos afortunados brasileiros que têm irmã com piscina. Ainda pretendo é claro, o nordestino é antes de tudo um forte. Vocês precisavam ver como, sunga na mão, eu passei igual ao Pensador de Rodin, todo o primeiro dia aqui.

Mergulho ou não mergulho? Ou, antes, visto a sunga ou não visto a sunga? Senti muita falta dos pensadores franceses que amiúde freqüentam as páginas dos jornais do sul do País, discutindo questões transcendentes como essa. O único real problema filosófico não é o suicídio, como queria o superado Camus, mas, sim, vestir a sunga? Ou, pior, envergá-la e não mergulhar? Ou mergulhar? Fica bem para um acadêmico, acostumado a trajes bem mais formais, como as bermudas, circular de sunga pela casa? Deveria mergulhar de fardão? Incomodaria em excesso meu ilustre confrade de Academia e conselheiro sartorial Oscar Dias Corrêa consultá-lo sobre tão tortuoso tema? Vocês pensam que a vida do cronista é leve, mas se equivocam rotundamente. Esse problema me tem torturado diuturnamente e não sei se o resolverei antes de voltar ao Rio.

Sim, e há umas coisinhas menores, tais como a Bahia ser um dos pouquíssimos Estados que está com a contabilidade em dia e que cumpre com folga a Lei Camata, mas ter tido suas verbas cortadas em 50%. Aliás, o Nordeste todo levou uma cacetada, nesses cortes.

Trata-se de um governo bíblico: a quem tem será dado, de quem não tem será tirado. Cada dia, acho mais motivos para elogiar. Um dia destes, quando tiver tempo, talvez elogie novamente. Esperem só o novo ano chegar, que vocês mesmos vão ter motivos para grandes elogios, provavelmente não vão nem precisar de mim.