Ai, vida

(João Ubaldo Ribeiro)

Isto não é justo, alguém está querendo me derrubar. Não me refiro aos parágrafos, à pontuação e a outros pormenores que me pareceram estranhos, na crônica da semana passada. Isso deve ser culpa do e-mail enviado por este meu computador caquético, suponho que devo resignar-me. (Acabo de receber nova mensagem informática do imisericordioso Zé Rubem Fonseca, reiterando suas aleivosias contra meu equipamento; não se contenta em ser melhor escritor do que eu e ainda tem que tripudiar, um dia os humildes se revoltam, é o que sempre digo para consolar-me.) Não, refiro-me, ao fato de que tenho outra vez de escrever com cruel antecedência. Levado pelo meu cretinismo cronográfico — que me faz nunca saber em que ano foi o quê, calcular que dia será de hoje a oito e outras façanhas naturais para todo mundo e para mim inatingíveis — pensei que teria chance de escrever já depois de passado o ano-novo. Enganei-me, neste domingo vocês estão no ano que vem e eu ainda aqui, segregado no ano passado.

Impossível, portanto, falar no réveillon. Ainda bem que fui criado entre ameaças sinistras de me porem um ovo quente na boca, se me pegassem em mentira. Por temor do ovo quente, minhas mentiras ficaram todas reprimidas e tive que me tornar ficcionista, para poder soltá-las com a chancela, conquanto relutante, da sociedade. Bem que eu podia ter cedido à tentação de descrever a festa no apartamento do José Aparecido, em Copacabana. A festa foi cancelada, bendito ovo quente, que não me deixou entrar nessa fria. Mas continuo a me considerar injustiçado, aqui olhando a chuva que cai o tempo todo e vocês aí, já com boas entradas, lépidos e fagueiros, prontos para o próximo século (por favor, cartas sobre como o século começa realmente em 2001 devem ser dirigidas ao editor, por favor). Que me resta?

Volta e meia a chuva abre um curto intervalo e agora ouço a passagem do famoso bloco "As bonecas do Leblon", em que estão desfilando muitos amigos meus. Imagino que até São Pedro gosta de ver Zé Fuzileiro, sisudo oficial da reserva dos Fuzileiros Navais, mais fagueiro do que Carmem Miranda, levantando a saia e dirigindo dichotes aos espectadores. Deve ser por isso que a chuva se deteve. Penso em ir lá, mas desisto, receando que amanhã alguém noticie que eu estava desfilando na Ataulfo de Paiva, com a fantasia "Cascatas do Niágara", de batom, ruge e paetês. Jornalista sendo, desde os remotíssimos 17 anos, sei que todo cuidado é pouco. Até hoje, por exemplo, levo a fama de ter tido a iniciativa de sugerir que o chá da Academia fosse substituído por uísque. A proposta foi do meu distintíssimo confrade Marcos Vinícios (assim com "o" mesmo, ele faz questão) Vilaça, mas alguém botou no jornal que tinha sido eu e a imputação não descola. Uma vez o Estadão, num raro momento de brincadeira, estampou uma fotomontagem em que eu aparecia de fardão, bermuda e havaianas, num cais de Itaparica. O jornal informava que era montagem e eu ainda nem tinha fardão, mas isso não impediu que um cidadão indignado e não de todo despido de preconceitos me escrevesse, dizendo que só um nordestino sem-vergonha como eu desmoralizaria entidade tão veneranda com aquela gaiatice. Sou, por conseguinte, mordido de cobra, não vou lá.

Vou, sim, para o fascinante mundo da Internet, é isso. Todos os meus amigos têm pós-graduação na Internet e preciso aproveitar estes dias de pasmaceira para deixar de ser uma excrescência paleolítica. Lá mergulho eu, navegando aparentemente impávido, mas disfarçando o medo de me afogar. Entro numa página, clico num botãozinho e de repente me surge Hitler, falando como numa assombração. Não, Hitler, não. Só clicando aqui, nestes dizeres marcados (um link, na língua micreira), a fim de escapar da ira nazista. Pulo para um lugar insólito, que me adverte sobre os perigos da desinformação e me conta histórias terrificantes sobre como somos enganados e espionados o tempo todo. Outro link, outro, mais outro, mais não sei quantos e, subitamente, lá desabrocha uma visão que não posso descrever aqui, por se tratar este de um jornal de família. Que coisa, como é que eles e elas conseguem fazer isso?

Bem, se aparece tão claramente fotografado, é porque fazem, o mundo está perdido. Em todo caso, redijo algumas anotações, talvez sejam úteis para o livro que estou escrevendo.

Sim, o livro que estou escrevendo, vergonhosamente atrasado. Me encomendaram (cartas sobre esse "me", no começo do período, novamente para o editor, pelo amor de Deus) um livro sobre um dos pecados capitais. Como eu sou baiano, naturalmente que pensaram em me dar a preguiça. Achei que tinha de defender a imagem da nossa Bahia e me recusei. Está bem, disseram eles, escolha um pecado aí. A luxúria, respondi insensatamente, para farto arrependimento posterior. Pois então você fica com a luxúria, concordaram eles.

Ah, meu Deus do céu, para quê? Apresentou-se uma senhora de mais de 70 anos e inacreditavelmente tarada, que me deixa chocadíssimo com o seu comportamento passado e presente, mas que não consigo calar.

Pondero que aquilo não fica bem, que ela pelo menos guarde as intimidades dela para um analista ou qualquer coisa assim, mas ela não me dá importância. Sento para escrever, ela imediatamente passa a expor acontecimentos e idéias que fariam Messalina ruborizar. E é desbocada.

Tento fazer com que ela veja que aquilo vai ofender a sensibilidade de muitos leitores, que não pode ser desse jeito, mas não adianta.

Problema seu, diz ela. Censor, xinga ela. Vamos lá, escreva aí: então eu peguei o rapaz pelos cabelos e, sentindo um arrepio me subir barriga acima...

Não sei como sairei à rua, depois desse livro. É inútil contar a verdade e atribuir a culpa merecidamente à safadíssima coroa, que, por sinal, suspeito morar aqui mesmo no Leblon. Quem levará a fama sou eu, é claro. A perfídia do destino me traz de volta o sentimento de injustiça. Mas, manda a boa doutrina, devo conformar-me sem queixas, carma, é carma. Sim, minha senhora, pode continuar ditando. Então a senhora pegou o rapaz pelos cabelos e... Tire a mão daí por favor, minha senhora. Ai, vida. Feliz ano-novo?