Finalmente, creio que posso afirmar com segurança, começamos o novo ano. Grande ano, este — penso eu, tomado por inusitado otimismo. Já se passam duas semanas e nada de calamitoso aconteceu, pelo menos que eu saiba. Ao contrário, temos até boas novas a celebrar, como o fato de que estamos cada vez mais protegidos. Já estávamos antes e agora novos instrumentos são adicionados a nosso já vasto arsenal. Queixas e reclamações são improcedentes, ou motivadas por agravos e ressentimentos invejosos, pessoais e interesseiros. Por exemplo, estou lendo aqui que, num só dia, houve 16 assaltos a ônibus em Salvador. Uma mente distorcida e movida a má vontade tenderá a achar isso um absurdo.
Nada mais falso. Esse tipo de atitude negativa só faz com que o Homem venha a se sentir obrigado a sair de seus cuidados e fazer nova exortação geral. Da mesma forma que nos exortou a fazer um check-up médico anual, exortar-nos-á a que todos tenhamos um carro, preferivelmente do ano, o que acarretará a vantagem adicional de socorrer a apreensiva indústria automobilística brasileira. Claro, assaltam-se carros também, mas a que ponto chegaremos, se continuarmos a pensar no pior? Vamos pelo menos esperar que o assalto nos aconteça para depois reclamar e, por enquanto — Deus é grande —, só aconteceu com outros. Sim, e o carro deverá ter ar-condicionado, para maior segurança. Que mais podemos querer? Está tudo à mão e o pior cego é o que não quer ver.
Agora os motoristas, como é do conhecimento público, são obrigados a portar um kit de pronto-socorro, que indubitavelmente salvará vidas preciosas. Não a dos motoristas e seus acompanhantes, é claro, pois não se pode querer tudo neste mundo, mas a dos guardas necessitados de um reforço no orçamento e a dos fabricantes dos kits. Luiz, aqui da operosa Farmácia Edith, de que sou freguês antigo, me disse que não é possível montar o kit por conta própria e ao mesmo tempo obedecer a todas as especificações oficiais. Não se acham para comprar todos os itens minuciosamente especificados, pelo menos a tal bandagem triangular, que, na verdade, é um pedaço de pano cortado de um jeito que nenhum fornecedor utiliza, somente o do kit mesmo. É necessário comprar o kit que já vem montado pelo fabricante, embora se noticie o contrário. Muito justo. Fico imaginando o diálogo de alto nível que norteou tão marcante adição a nossas normas de trânsito.
— Bote aí um artigo tornando obrigatório o uso desse meu kit.
— Como assim? Esse kit não serve para nada. Olhe aqui, gaze, um par de luvas cirúrgicas, bandagem triangular, duas ataduras e tesoura sem ponta. Luvas cirúrgicas?
— Não é isso. É que, realmente...
— Me admira sua insensibilidade. Não serve para nada? Eu fabrico esse kit. Serve para meu faturamento.
— Sim, mas não se justifica um dispositivo legal destinado a melhorar o faturamento de uma firma.
— Serve também para o faturamento das farmácias, dos supermercados e dos camelôs, serve para a economia! E os fabricantes de luvas de borracha? E os seringueiros? E os plantadores de algodão? Pense grande! Pensando desse jeito mesquinho é que o País não vai para a frente!
— Mas eu ainda acho que...
— Não se justifica? E o problema social? E os salários de meus empregados? E a indústria nacional? E o sentimento nacional? Você acha que, num momento delicado como o que vivemos, o povo brasileiro vai se recusar a desembolsar uma merrequinha para ajudar o nosso desenvolvimento? Onde está você, onde é que você vive? O mal do Brasil é esse, todo mundo vê uma grande jogada, mesmo quando se pretende tomar uma medida de largo alcance social, como essa.
— Bem... Não é uma jogada?
— E o seu? Quem vai pagar o seu? E o do guarda, como é que fica o complemento salarial do guarda, que pode dispensar a multa e os pontos perdidos na carteira, mediante uma pequena contraprestação pecuniária da parte do motorista? Para melhorar a polícia, só garantindo uma renda decente para o policial! Me admira, me admira muito sua insensibilidade!
— Tudo bem, tudo bem, você venceu. Mas pode botar pelo menos um mertiolatezinho aqui no kit?
— Eu não fabrico mertiolate! Mertiolate arde! E é de um laboratório estrangeiro! Entreguista! Não vá estragar tudo, você não pode imaginar o trabalho que já tivemos para chegar ao ponto em que estamos, não complique, tá?
— Tudo bem, pode deixar. O meu, você disse? Não sei como pude esquecer isso. Claro, o meu. Tudo bem, não é uma jogada, claro. Obrigatoriedade do kit de primeiros-socorros, tudo bem. E esse meu pró-labore, quando chega?
— Quando começar o faturamento, já está previsto nos custos, você sabe que eu sempre fui corretíssimo.
— Tudo por fora, hem?
— Pode deixar, você sabe que eu sempre fui corretíssimo.
E, assim, mais uma vez, seguimos nosso destino privilegiado. Resta-me deixar a farmácia com um sorriso contente, embora o kit ainda esteja em falta. A procura vem sendo grande, o brasileiro sabe colaborar para uma causa justa e é inteligente o bastante para ver quando não está sendo entrolhado outra vez. Só ter certeza de que eles continuam a velar por nós já é suficiente para me alentar. Decido entregar meus pensamentos a coisas construtivas e parar de vez com a fracassomania, até mesmo porque o discurso do Homem foi inspirador, não foi? Sim, vamos em frente. Vamos esperar a obrigatoriedade de um curso especial de atendimento de emergência para todos os motoristas. Seria bom para os médicos e enfermeiros instrutores, para a nossa formação, bom para a economia, enfim. Não seria uma jogada, claro. Aliás, tampouco seria uma jogada a instituição da obrigatoriedade de todos comprarem pelo menos um livro nacional por mês, de uma lista em que meu nome constaria indispensavelmente. Seria bom para a cultura, para as editoras, para a sobrevivência dos escritores e mais um montão de coisas. Vou arregimentar apoio, excelente idéia. E grande ano este, que já começou tão criativamente, com os bons exemplos vindo, como sempre, de cima.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 10/01/1999.