O nosso imenso Brasil num boteco do Leblon

(João Ubaldo Ribeiro)

— O Soares, tu manja o Soares?

— Claro, o Soares. Nunca mais apareceu, não é?

— Está em Valença, refugiado na casa da filha. Com medo de ser preso.

— O Soares? Mas o que foi que ele fez?

— O apelido dele agora é Mike Tyson. Ele mordeu a orelha do médico e tirou uma lasca fora.

— Não entendi nada.

— É o seguinte. Ele não vem andando muito bem. Você sabe, ele é mineiro de quatro costados e funcionário público aposentado. Já fazia uns tempos que ele vinha mal, ganhando uma mixaria e tendo crise. Agora, com esse negócio de o Itamar ser culpado de tudo, foi a última gota. Ele foi ao médico um verdadeiro farrapo humano. O médico aí disse a ele que economizasse e procurasse não se aborrecer. Foi a conta.

— Foi por isso que ele mordeu a orelha do médico?

— E você acha pouco? O cara-de-pau olha para ele, ouve quanto ele ganha, ouve o papo dos descontos novos, comunica que a consulta agora está mais cara por culpa do Itamar e ainda aconselha ele a não se aborrecer?

— É, realmente...

— Ele disse que sentiu um impulso incontrolável, marchou para o médico, tacou o dente na orelha dele e foi embora sem pagar.

— Que coisa, hem, rapaz, as pessoas estão mesmo malucas.

— Estão, estão. Ele me disse, antes do episódio da dentada no médico, que tinha pesadelos com o Fernando Henrique fantasiado de Napoleão e gritando "al paredón!", diante de funcionários públicos, aposentados e mineiros, carnificinas horrorosas.

— É, mas o caso dele é extremo, deve ser um problema de sensibilidade excessiva, um caso isolado.

— Onde é que você mora? Caso isolado é o seu, que ainda tem dinheiro para o chope e a coxinha de galinha. Você não soube do Murilão?

— O Murilão também está foragido?

— É como se estivesse. Desapareceu no dia do desfile da "Bonecas do Leblon" e nunca mais ninguém botou os olhos nele. A mulher dele disse que ele estava um pouco estranho, mas ela creditou o fato a ele ter tomado umas e estar estreando sua fantasia de "Lolita em fúria". Mas aí, quando o bloco chegou na esquina da Dias Ferreira com a Venâncio Flores, ele começou a babar, pegou a vassoura de Popó do Flor do Leblon, disse que era uma bazuca e saiu correndo e cantando o hino da Infantaria pela Venâncio abaixo. E também gritava "cuscuz, desgraçado! Cuscuz, desgraçado!"

— Isso é o hino da Infantaria?

— Pois é, coisa de maluco. Coitado do Murilão, tinha 22 anos de empresa e foi demitido e não se adaptou muito bem a vender cuscuz na feira da General Urquiza.

— Mas, você me desculpe, para mim é outro caso isolado. O negócio não está tão feio assim.

— Concordo com você, está um pouco pior. Que é que você me diz dos preços?

— Ainda não aumentou nada.

— Ainda não aumentou? Tudo já aumentou! Quer dizer, ainda não chegou até nós, começa a chegar segunda-feira; no mais tardar, quarta. Eu trabalho no comércio e sei das coisas. Tu sabe como é o cálculo dos preços no comércio?

— Claro que não, deve ser complexo.

— Não tem nada de complexo, qualquer analfabeto pode fazer. Subiu 20% o preço da farinha? Aumenta em 25% o preço do pão.

Esses cinco são a margem de segurança, é tradicional.

— Mas o custo do pão não é somente a farinha.

— Não vem ao caso! Não é assim que manda a tradição. Tem que respeitar a tradição do comércio. Em outros setores, é até mais simples. Quanto é que custa o produto X atualmente? Cem, vamos dizer. Muito bem, o dólar dobrou, vai custar 200. Aí custa 200. Já tá todo mundo trabalhando para atualizar os preços.

— Mas mesmo dos produtos que não dependem do dólar?

— Tudo depende do dólar. Como é que vai subir o dólar e aqui nenhum preço vai subir? Na semana passada, eu quis comprar um computador novo e o simpático lá da loja me informou que, por enquanto, os pedidos estão suspensos. Tradução: estão esperando a remarcação. É o mercado, cara, é assim que as coisas funcionam. Em alguns casos, é preciso de mais um bocadinho de criatividade, como na questão dos remédios. Remédio é mais artístico, tem que ter um toque extra. Mas já começou também. Que ver uma coisa? Vá procurar complexo B, da marca que todo biriteiro de responsabilidade compra, que é que você acha? Sai a embalagem de cem pílulas a sete e pouco, entra a embalagem de 30 pílulas a cinco e pouco. Sacou? O produto não aumentou, o que mudou foi a embalagem e a quantidade, sacou? Quem me contou foi Luiz da farmácia Edith, quando eu fui pegar o meu complexo B. Faça um estoquezinho, que a coisa vai ficar preta, disse ele.

— Não, está certo que isto é um escândalo, mas nem tudo é assim, temos que dar um crédito de confiança.

— E você já faz outra coisa na vida, desde que se entende? Se crédito de confiança fosse grana, a gente já estava milionário.

— Mas o homem disse que não vai haver aumentos de preço injustificáveis.

— Claro que não, todos eles são justificáveis. É tudo na ponta do lápis: subiu a farinha 20%, sobe o pão 25%, tudo matemático.

— Não acredito, o homem foi peremptório. Não ressurgirá a inflação.

— De que homem você está falando? Do Sarney, por exemplo?

— Não venha com ironias. A situação hoje é outra.

— Claro, a situação é outra, sempre é outra. Principalmente os preços. Mas você tem razão, vamos viver o presente. O futuro a Deus pertence, há um certo consolo em saber disso. Se bem que, com a quilometragem que eu já tenho, fique meio desconfiado até disso.

— Desconfiado de Deus?

— Não, d'Ele não. É que o sujeito fica mordido de cobra, com o correr dos tempos. Você lembra que o homem não acreditava em Deus e agora acredita?

— Lembro. Viu a luz, acho bonito. Qualquer um pode passar por isso, é uma bênção.

— É, mas me vem aquela sensação de que isso foi somente para mais tarde botar a culpa em Deus, o Itamar não pode dar vencimento a tudo. Falar nisso, Deus já mandou subir o chopinho?