Ficando maluco devagarzinho

(João Ubaldo Ribeiro)

Claro, só pode ser isto. Tão em frente de meu nariz — se fosse uma cobra, me mordia, como se diz na minha terra — e eu não percebia. Mas realmente só pode ser isto: estou ficando maluco. Meu amigo Luiz Cuiúba já observava desde a nossa infância que eu tinha um problema na idéia, era meio avariado do juízo. Já que poucas pessoas me conheceram como ele ou têm sua sensibilidade e veia filosófica, eu já devia ter prestado mais atenção em minha condição mental. Se bem que de pouco fosse adiantar, porque não existe remédio para certas loucuras e não há como preveni-las com segurança. Mas talvez eu tenha antecipado um pouco sua instalação, não tomei certos cuidados que hoje sei imprescindíveis e deu no que deu. O processo é mais ou menos lento, mas se sente que a progressão anda a passos firmes.

Sim, em grande parte a culpa deve ser minha. Em primeiro lugar, não tinha nada que viver enfurnado aqui, sem ir a lugar nenhum, a não ser — ai de mim — a médicos e dentistas, e lendo todo tipo de jornal imaginável. A diabólica Internet tem praticamente todos, de toda parte do mundo, e eu não posso fazer nada, sou um infeliz viciado. Já disse antes, longe de mim cuspir no prato, mas vocês hão de convir em que, para quem é avariado do juízo, ler jornal configura gravíssima imprudência. Hoje estou seguro de que muito do que acho que recentemente li e ainda leio nos jornais e revistas foi inventado pela minha imaginação demente. Eu é que, reduzido a um frangalho nervoso, por acreditar em tudo com que nos aterrorizam — notadamente as notícias médicas, basta ler os sintomas da doença, que eu pego logo —, estou criando um universo igualmente enlouquecido. Óbvio que não existe nada disso, é tudo insanidade minha mesmo, espero que vocês estejam aliviados, desculpem ter andado passando grilos para vocês, quem é burro pede a Deus que o mate e ao diabo que o carregue, de boas intenções o inferno está cheio, essas coisas.

Por exemplo, eu não devo ter razão em achar que nós, o povo, sempre fomos garfados, tungados, esfolados, furtados, roubados, torturados, assassinados e por aí vai. Não pode ser, até porque o povo não é como eu. Digo como é que é eu. (Cartas protestando contra este pronome aí devem ser dirigidas ao editor desta página, pelo amor de Deus, ou ao dr. Arnaldo Niskier, na Academia.) Para isso, relembro um episódio da remota juventude. Defendia eu, então atendendo pela reputada alcunha de Delegado (devido a meu eficaz policiamento da grande área, no feliz dizer do locutor esportivo Edson Gaguinho), a gloriosa camisa da equipe do Flamenguinho do Rio Vermelho, em Salvador, e um centerralfe (quem não sabe o que é um centerralfe não manja nada de futebol, queira por favor procurar outro colunista) do outro time resolveu avançar de vez em quando e me dar uma rasteira, sob as vistas complacentes de sua senhoria.

Ele dava a rasteira e estendia a mão para me levantar, pedindo desculpas profusas, passando a mão na minha cabeça (baiano não gosta que lhe passem a mão pela cabeça, a não ser no sentido metafórico; querem ver, experimentem, pode até sair desforço físico) e fazendo uma cara contrita. Tudo bem, viva a desportividade, viva a fraternidade humana. Cinco minutos, lá vinha ele, nova rasteira. Nova mão estendida, novas desculpas, novas esfregadinhas no meu então couro cabeludo. E assim sucedeu um tempão, até que finalmente compreendi que tanto ele quanto o juiz estavam curtindo com a minha cara. Armei uma chupeta para ele. "Chupeta" era o nome então dado na Bahia a um calcinho bobo que nós, policiadores da grande área, aplicamos com naturalidade, principalmente se jogarmos no Santos. Com um leve toque, desvia-se o balão de couro da frente do pé adversário no momento do disparo e ele chuta, em vez do esférico, a sola do pé (Deus ajudando, o calcanhar) do defensor. Dói um bocadinho, às vezes quebra um ossinho ou outro, mas não é nada para se fazer um escândalo, todo mundo já viu isso, faz parte do rude esporte bretão, até porque, no meu tempo, futebol era pra homem. Foi a forma que encontrei para expressar minha revolta, mas a incompreensão tornou a vitimar-me e o árbitro me expulsou, tendo isso aberto mais um rombo em nossa já assaz porosa zaga, com o resultado de que amargamos a injusta quão cruel derrota de 8 a 2.

Assim é eu. Até hoje, levo tempo demais para dar partida no desconfiômetro e, quando ligo, freqüentemente já é tarde. O povo não é como eu, já teria chiado muito mais, se as coisas fossem como eu penso.

Mas ninguém chia, está todo mundo satisfeito, só os fracassômanos e os silvérios dos reis reclamam. Não reclama nem mesmo o amigo que acaba de me telefonar, o bravo cineasta Ronaldo Duque. Com o humor afável de sempre, Ronaldo estava sendo assaltado. Ou por outra, estava trancado num prédio do Flamengo, onde se desenrolava um assalto, aí pelas 11 horas da manhã. Os assaltantes chegaram de crachá, entraram e começaram o serviço, mas alguém conseguiu chamar a polícia. Na hora em que Ronaldo me falou, a polícia ainda estava revistando o prédio, ninguém sabia o que ia acontecer. Vocês precisavam ouvir o tom bem-humorado de Ronaldo e as risadas que ele deu. Pois é, eu é que sou maluco, achando que isso desconjunta as pessoas. Desconjunta nada, faz parte natural da vida. É absolutamente normal e acontece o tempo todo, em qualquer cidade grande, um amigo telefonar para o outro no meio de um assalto.

Olá, tudo bem, estou sendo assaltado aqui — o senhor podia tirar o cano da metralhadora do meu ouvido, atrapalha um pouco falar no telefone, muito obrigado —, talvez eu chegue atrasado para nosso almoço, mas vou ver se consigo autorização do assaltante aqui para sair mais cedo do que os outros, ele é boa gente, acho que não vai dar problema, o único problema é que você vai ter que pagar o almoço, porque eu pedi a ele para me deixar um dos cartões de crédito, mas ele me explicou que lamenta, por ele deixava, mas a firma é muito rigorosa, não abre exceção, é isso mesmo, mas não foi pra isso que eu liguei, eu...

Verdade, é isso mesmo. E o assalto nem foi o primeiro assunto que Ronaldo abordou. Grande Ronaldo, me conduziu, com brilhantismo e oportunidade, à convicção, antes um tanto embrionária, de que estou maluco. Não levem em conta, pois, o que escrevi. Esqueçam o que eu escrevi, como disse o Homem. Se ele pode, eu também posso, sejamos democratas e compreensivos em relação a um pobre tarouco, que escreve para ganhar o seu modesto pão e não tem culpa de estar ficando doido.

Agora que vi a luz, embora quiçá por breve interlúdio, peço desculpas por qualquer coisa e me recolho ao claustro de meus delírios. Até que nem ia falar em nada disso, ia falar mal do Zé Rubem Fonseca, que mais uma vez me persegue. Mas, me perdoem, fica para depois, maluco é assim mesmo, o que nós dizemos não se escreve.