De uns tempos para cá, fala-se muito em minorias. No meu tempo de rapaz, minoria era uma palavra parlamentar, ou então delírio de um anarquista ou outro. Hoje não, hoje não há artigo sobre problema social que não mencione minorias e hoje todos nós pertencemos, sempre orgulhosamente, a incontáveis minorias, algumas das quais esquisitíssimas, tais como negros (no sentido americano, agora aqui muito usado, ou seja, quem tem algum sangue negro) na Bahia ou mulheres em geral, ou mesmo escritores, que, como se sabe, todo mundo só não é porque não quer. Isto quer dizer que a palavra "minoria" adquiriu um sentido sociológico especial (tudo adquire um sentido sociológico especial hoje em dia, vivemos tempos sociológicos) e deixou de ser o antônimo de maioria. Minoria é qualquer categoria que tenha um denominador comum e se sinta, por alguma razão, oprimida ou discriminada, mesmo que seja a maioria. É a nossa querida língua pátria em evolução, em breve incluiremos duh-duh-duh e sbfff-sbfff em nosso vocabulário mais preciso.
Muito justamente, deflagrou-se ao mesmo tempo grave preocupação com o destino das minorias, mas, talvez por causa da crise (crise, que crise? — perguntará um Certo Alguém), o caso de que vou falar está meio esquecido. Não tenho bem certeza dos pormenores, mas, segundo me contou, no renomado boteco Flor do Leblon, Carlinhos Judeu — e todo mundo sabe que Carlinhos Judeu, que é magnata do sorvete, só mente quando é para vender o sorvete dele, de resto sabe tudo e diz a verdade, doa a quem doer —, no renomado boteco Flor do Leblon, vai ser aprovado aí, mais dia menos dia, um projeto regulamentando a piada.
Ninguém está prestando atenção, mas é assim à sorrelfa que as coisas pegam, como aconteceu com o kit de prontos-socorros. O otariado nacional comprou, a turma levou a grana, agora está na cara que era só brincadeirinha. O mesmo pode acontecer daqui a pouco. Você conta uma piada, não está registrado no Conselho Federal de Contadores de Piada e paga multa ou cana inafiançável, ou as duas coisas, sabemos como o Brasil é duro para com os crimes hediondos e poucos de nós são canadenses.
Claro, o objetivo do projeto denunciado por Carlinhos não é esse, é simplesmente proteger a imagem das minorias. E, também muito claro, a necessidade do Conselho seria uma imposição da realidade, tornar-se-ia imprescindível ter um órgão que fiscalizasse o cumprimento da lei. As piadas não poderão ofender, desabonar, infamar e quantos sinônimos haja mais, nenhuma "minoria". Não poderão ser contadas piadas de português, de baiano, de gaúcho, de gago, de anão, de bicha, de japonês, de árabe, de judeu, de padre, ou seja, piada nenhuma. A coisa vai ficar difícil e é com tristeza que prevejo o surgimento de novas modalidades de crime organizado — o contrabando e o tráfego de piadas, com os infratores algemados e condenados a ler as atas das sessões do Congresso.
Daí para a regulamentação da condição de contador de piada, seria um passo. De início doloroso, principalmente para os saudosistas, mas necessário. Deverão ser inaugurados cursos universitários de Piadologia (Hilariologia Aplicada, talvez, para soar mais acadêmico) e, depois de um certo tempo, só poderá contar piada quem tiver diploma e registro, pagando uma anuidade modesta e descontando pontos na carteirinha, caso cometa infrações contra o Código Nacional da Piada e da Anedota.
Sei que pensam que faço chiste, mas não faço. Os tempos andam mudados, esse tipo de coisa pode acontecer mesmo, de certa forma já aconteceu, não só aqui como em países que se consideram bem mais civilizados do que o nosso. E mesmo essa zelosa proteção das minorias pode não resolver coisa alguma. Nada detém a marcha avassaladora do progresso e agora leio aqui que as minorias se defrontam com uma ameaça muito mais terrível do que a simples discriminação ou ridículo. Agora estão desenvolvendo armas específicas para certos grupos étnicos ou até ocupacionais, quem sabe. Existirá um gene do dendê? Se existir, nós, baianos estamos ameaçadíssimos, pois, para nosso geral espanto, existe quem não goste de baiano. Com essas armas modernas, por exemplo, um determinado tipo de veneno só fará efeito no indivíduo que houver comido um acarajé, um caruru ou uma moqueca na última semana, não escapa um baiano. O vírus da farinha e da rapadura, bem mais abrangente, poderá livrar o Brasil de vez dos nordestinos. Agora que eu de vez em quando dou uma espiada na Internet, acredito em tudo. Vou passar a azeite de oliva, doravante.
Mas agora tomo uma liberdade com vocês a que talvez não tenha direito; afinal, ninguém tem nada com isso. Mas alguns de vocês podem ficar curiosos. Ontem, acabei de escrever um livro novo, um livrinho pequeno, mas que me tomou muito tempo. Não sabia que ia acabar ontem.
Sabia que estava perto do fim, mas não tanto. Convivi meses e meses com uma personagem, digamos, excêntrica e terminei me afeiçoando a ela. É uma mulher muitíssimo fora dos padrões a que estamos acostumados (ela mesma não acha tanto assim), culta, simpática, inteligente, 68 anos e "na ativa", como diz ela. Não é propaganda do livro que vai sair, eu não faria isso, nunca fiz — se saiu agora, não foi o objetivo. Quis, não sei bem por que, repetir um segredo que muitos escritores já lhes contaram, mas que não cessa de maravilhar: como os personagens parecem de fato ter vida, como fazem o que lhes dá na telha ou é seu destino, independentemente de quem escreve. Aí só estou contando aos amigos que fiquei com saudade dela, era uma grande companhia.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 07/03/1999.