Morrendo em perfeita saúde

(João Ubaldo Ribeiro)

Muitos médicos pensam que eu não gosto deles. Fico bastante chateado com isso, porque não é verdade. Tenho diversos amigos médicos, não os discrimino em festas e reuniões sociais e falo com a maior parte deles na rua. Deve ser pela minha mania de dizer coisas mal explicadas e, portanto, mal entendidas. Por exemplo, tenho o hábito de afirmar que somos um país atrasado e, toda vez em que alguém diz que qualquer coisa aqui é de Primeiro Mundo, peço que me apliquem um Plasil na veia. E, entre as nossas primeiromundices mais citadas (já foram os pilotos de aviação, já foram os arquitetos, já foram até os jogadores de futebol, vocês se lembram), está a medicina. A nossa medicina é adiantadíssima fazemos praticamente tudo o que os outros fazem e ainda mais umas coisinhas.

Pois para mim, isto é prova de atraso. Não pode ser adiantada uma medicina que não resolveu nenhum dos problemas mais graves que enfrentamos e, para quem tem dinheiro, resolve tudo. Pelo contrário, isso é medicina atrasadíssima. Transplantes, por exemplo, são dramas pessoais e familiares indescritíveis. Mas não estão entre os grandes problemas de saúde nacionais, como a desnutrição, a xistossomose, a doença de Chagas, as verminoses e todas as endemias trágicas e até arcaicas, que enfrentamos. Dirá o amigo, sim, mas esses não são problemas da medicina. Se não são, que mais será? Claro, dependem de economia, administração, saneamento básico, cultura, política e assim por diante. Mas a verdade continua inescapável; a medicina não está adiantada, se não cura ou trata as doenças majoritárias de nosso povo e ainda fica divulgando estatísticas abiloladas — quem mais mata é câncer, quem mais mata é coração, quando quem mais mata, todo mundo está careca de saber, é a fome, com seu cortejo de misérias, eu queria ver como essas estatísticas são compiladas no acolhedor hospital público Adeus, da minha querida Itaparica. Então a medicina não está adiantada, quem está são os médicos, ou alguns deles, é muito diferente. Temos médicos geniais e uma medicina de oitava categoria.

Mas acho que os médicos concordam com isso. Com o que eles não concordam, na realidade, é a meu respeito. Em verdade lhes digo, meus caros amigos, vou primeiro ficar cego, em seguida estuporar e depois bater as botas com visão perfeita e estado de saúde mais-que-perfeito.

Ficar cego é que é o chato, estuporar tudo bem — sooner or later, we shall all be dead, como observou sabiamente lorde Keynes; mais cedo ou mais tarde, estaremos todos mortos. Mas a perda da visão é chata, principalmente quando o perdedor é um degenerado que vive praticamente só da vista. E uns anos para cá, sei que venho perdendo a vista. E aprendi todas as explicações que me dão podia até pleitear um emprego de assistente de oftalmologista. Visão perfeita, fundo de olho magnífico, cintilações radioativas deslumbrantes. Só que eu enxergo cada vez pior e os médicos dizem que não. Que é que eu vou fazer, eles sabem, eu não, eu só procuro enxergar. Eu ficarei cego, eles enxergarão, a ciência, esta besta, triunfará.

Não pensem que é paranóia, escritor fica cego. Começamos por Homero, o pai de nós todos. E aí segue a lista, um nunca-acabar, entre cegos e ceguetas de vários graus. Sem ordem cronológica e, muito menos ainda, de importância, temos lá Milton. Nunca consegui lê-lo em língua nenhuma, mas é Milton, a gente tem pelo menos que fingir que ouviu falar. Tem Joyce, que pode ter escrito Finnegans Wake porque estava cego mesmo, mas nem por isso podemos ignorá-lo. Tem Aldous Huxley, que encontrei na Bahia, encostando papéis no olho, para conseguir ler alguma coisa. Tem Borges. Tem Camilo Castelo Branco. Tem o caolho Camões. Tem uma multidão. Mas, mesmo lançando à cara dos médicos tão patético cenário, continuo em perfeita visão. Meu consolo é que Goethe, que morreu pedindo mais luz, há de ter padecido e falecido do mesmo mal. Grande consolo, foi Goethe quem me deu esta camisa.

A agora tem a vesícula. A médica que me fez a ultrassonografia era uma senhora feliz. Conhecia-me de nome, cumprimentou-me alegremente e me cumprimentou pela higidez de meu abdome.

— Que beleza! — disse ela.

— Belas vísceras.

— Obrigado — disse eu.

— Tudo bem?

— Que tal uma pedrinha na vesícula? — disse ela.

Pois é. Uma pedrinha na vesícula. Uma pedrinha lá (agora eles acham que pedra na vesícula pega, eles vivem mudando de idéia, deve ser influência do governo), boiando e, de cinco em cinco minutos, enchendo a paciência. Eu pensei que ia ao clínico, dizia isso a ele e ele mandava tirar a pedrinha, ou a vesícula, ou eu mesmo. Não fez nada disso. Há mais exames a executar, a medicina está muito adiantada.

Ninguém sabe nada; os exames para corroborar o que já se supõe estão a ser aprestados. Antigamente, a medicina era uma arte. Hoje é um processador de dados, Deus nos proteja. Devo ter exames a fazer até o fim do ano, creio mesmo que serei encaminhado à Nasa dentro em breve.

Enquanto isso, tamanho é meu mau humor, se você me telefonar, irá preferir dar um beijo na boca de um pit-bull. Viva a medicina, embora eu ache que a literatura é uma ciência mais exata. Encontro-os no São João Batista, em perfeita saúde.