Damas e senhoras

(João Ubaldo Ribeiro)

Antes de mais nada, cumprindo o dever de tomar partido em relação aos assuntos de relevante interesse público que a todo instante se assomam, quero declarar — ainda que ciente das graves conseqüências que minha posição poderá acarretar-me — que sou a favor de que as damas tenham acesso gratuito ao Maracanã. Não me vejo tentado a passar um telegrama à governadora Benedita, congratulando-a por essa nova conquista feminina, mais uma entre as tantas deste fim de século, porque, na verdade, as razões para minha concordância são outras. Pequenas, talvez até mesquinhas, mas há que ser honesto. É saudosismo mesmo. No fim da década de 40, em Aracaju, as damas também não pagavam para ir ao futebol, ver jogar o Sergipe, o Cotinguiba, o Passagem, o Olímpico, o Palestra e outras aguerridas agremiações, entre os quais o meu hoje moribundo Confiança, quem te viu, quem te vê, meu campeão de 1950. Por conseguinte, sou do tempo em que as damas não pagavam e continuo achando isso altamente fino. "Damas não pagam, damas não pagam", sorria o porteiro, acenando para as senhoras e senhoritas, e eu achava altissimamente fino mesmo.

Mas não concordo com o argumento, oferecido por uma fonte do governo estadual (sou também do tempo em que governo não tinha fonte, só governo mesmo), segundo o qual, estimulada por essa medida, a maior freqüência feminina ao estádio fará com que a violência diminua. Gravíssimo erro histórico-antropológico-sociológico, a começar pelo fato de que mulher é muito mais porradeira do que homem, todo mundo sabe disso. Dra. Margaret Mead, antropóloga famosa para quem hoje alguns torcem o nariz, mas que deixou obra e vida muito fecundas, uma vez disse que era contra as mulheres combaterem no Vietnã porque elas eram muito mais violentas do que os homens. Quem diz não sou eu, foi dra. Margaret e quem já leu qualquer coisa que ela escreveu não vai ter como alegar que ela era machista. Mulher engrossa com muito mais facilidade do que homem e já parte atirando com todas as armas, das unhas ao salto alto e não desiste ou perdoa com facilidade. Não interessa se é inato ou cultural, mas pessoas tão diferentes entre si quanto a dra. Margaret e eu observam a mesma coisa; e o leitor também sussurrará opinião igual, assim que a mulher sair de perto. Tenho certeza de que a maior parte dos homens, inclusive eu, preferia encarar no braço cinco Inocêncios Oliveiras a meia Marta Suplicy.

Tenho vários exemplos próximos. Minha comadre Letice, que, se estiver muito gordinha, deve pesar uns 42 quilos, escorraçou dois assaltantes armados da casa dela, em São Paulo, brandindo um ferro de lareira e assistida por um weimaraner abestalhado que abanava o rabo e lambia as mãos dos assaltantes. Depois ela me contou que achou os dois mal-educados e o sangue lhe subiu a cabeça, essas coisas. Minha sogra Filhinha, fornidinha em seus 80 e poucos anos, esgrimiu sua valente sombrinha contra dois pivetes em Ipanema, tomou de volta a bolsa na base do esbregue e da sombrinhada e, depois de mais esbregues, deu uns trocados para um sanduíche a cada um. Minha irmã Sônia, que, aliás, como todas as mulheres da família, é muito mais macha do que todos os machos da família, encheu de bala a carroceria de um caminhão que arranhou o carro dela na estrada e cujo motorista deu risada. (Parou de rir rapidinho, quando ela deu no trabuco.) E por aí vamos, para ficar só no âmbito familiar.

O antigo Bar Brasil, na Praça da Sé, em Salvador (tomara que ainda esteja lá, tenho saudades), era conhecido pelo movimento intensíssimo e pela quase absoluta ausência de brigas. O espanhol do balcão me explicou o segredo. Ele desencorajava a freqüência feminina. Não barrando ou botando para fora, nada dessa grossura, mas simplesmente fazendo menções desgostosas ao baixo nível da freqüência, aos palavrões, aos cafajestes desrespeitadores, ao ambiente que "depunha contra". As moças, principalmente naquele tempo, ficavam cabreiras e não iam. E não pintava briga, ao contrário do que acontecia em todos os outros botecos das cercanias, nos dias de movimento. O Bar Brasil era um oásis de fraternidade e paz, sem ninguém querendo se exibir mais do que os outros para as mulheres ou os homens, meter a mão na mulher do outro ou no homem da outra, tirar satisfação e outros fatos sociais ocorridos costumeiramente em mixed company (estava chateado porque até agora ainda não tinha usado uma expressão inglesa, mas, Deus é grande, apareceu essa aí).

Ubi femina, ibi porrada — agora é meio latim, estou o cão hoje. (Cartas sobre como o latim está errado para o editor, por favor.) Era um dos lemas de Sandoval Rei da Noite, que foi meu amigo e dono de boates e gafieiras famosas em Salvador. "Teve mulher, teve porrada", traduzia ele. Como de fato, eu que o diga. Estava eu, faz tanto tempo, pacatamente me preparando para uma noite musical (grande maestro Vivaldo Conceição e sua orquestra) numa dessas gafieiras, na companhia de duas grandes amigas minhas, que até hoje são grandes amigas minhas, embora não valham nada, como se verá. Elas são moças muito afetuosas e carinhosas, de forma que me davam beijinhos e alisadinhas o tempo todo, essas bobagens de gafieira mesmo. Mas uma, a branca, se assanhava bem mais do que a outra, a negra. Aí um cidadão achou que minha mulher era a branca e se dirigiu à negra, todo distintíssimo e com uma curvatura elegante, tirando-a para dançar.

— Eu não posso, porque meu marido não permite — respondeu a canalha, me apontando com o queixo.

Ele ficou passado de vergonha, pediu desculpas profusíssimas, quase chora. Mas, recompondo-se, endereçou-se à branca.

— Eu não posso, porque meu marido não permite — disse a outra canalha.

— Cês tão curtindo com a minha cara, mas cês não vão curtir, não — falou ele, puxando uma perna para trás e eu já sentindo a pezada.

Graças ao bom Deus, Sandoval, que também conhecia as duas e tinha adivinhado o que ia acontecer, já havia providenciado o chega-pra-lá, o deixa-disso e o paz-e-amor e só tive que agüentar foi o cara passar a noite toda em nossa companhia, reiterando sua acendrada admiração, por eu ter tirado a sorte grande, ao desposar duas senhoras tão encantadoras. Passou o duro transe, mas a lição não passou. Agora mesmo é que eu não vou mais ao Maracanã. Mas as senhoras não deixem de ir, por favor, e não se esqueçam de levar as sombrinhas.

Aliás, minha citação em inglês da semana passada está errada. Zé Rubem Fonseca me telefonou e se declarou envergonhadíssimo comigo, ameaçando deixar de me dirigir a palavra. Não é nada daquilo que eu atribuí a lorde Keynes. A frase dele é "In the long run, we are all dead". Mas eu achei a minha melhor. Zé Rubem também, aliás.