Contribuição para uma banheirologia

(João Ubaldo Ribeiro)

Perguntarão vocês, com justíssima razão, por que escolhi falar hoje em banheiros. É uma boa pergunta, cuja resposta provavelmente não satisfará a todos, mas há muito desisti da veleidade juvenil de satisfazer a todos. Em relação a esta coluna, por exemplo, há várias correntes entre os leitores, pelo que posso perceber em cartas e observações como as do senhor severo que de vez em quando me confronta na Ataulfo de Paiva e declara que "a de ontem estava uma porcaria" (não é bem "porcaria" que ele diz). Ele é membro da ala radical do setor dos sérios. Só quer que eu escreva coisas sérias, o que lá signifique isto, em oposição ao setor, igualmente intransigente, que só quer que eu escreva frivolidades gerais e me manda cartas indignadas, quando apareço de paletó e gravata em algum lugar. Tenho de me resignar, é claro. Já acho ótimo quando consigo satisfazer uma meia dúzia de três ou quatro gatos-pingados, não sou pobre soberbo.

Falo em banheiros como podia falar em elefantes, qualquer coisa vale, agora que, segundo leio aqui nas gazetas, a crise acabou e podemos voltar a nos ocupar de trivialidades. Mal estávamos tomando o gostinho da crise, ela terminou. Má vontade, pois, de quem continua a enxergar problemas e quer falar neles, não há mais crise nenhuma, a moeda estabilizou-se definitivamente, o comércio prospera magnificamente, o desemprego foi-se espetacularmente e a recessão viu-se esmagada formidavelmente. Portanto, ainda que isso chateie o senhor da Ataulfo, sou obrigado a buscar assunto em outras áreas. E a do banheiro é tão boa quanto qualquer outra e melhor do que muitas, como espero vir a demonstrar em seguida.

A idéia de falar em banheiros me veio do relatório de viagem que me enviou meu sobrinho Neneco, estreante em Europa e atualmente estudante em Milão. Ele é muito aplicado e simpático e está se dando bem na Europa. Mas tem graves queixas banheirais, que seu velho tio aqui compreende muito bem. Na Europa, como se sabe, não se acredita muito em banheiros e banhos em geral. Nada melhor para o moral de um brasileiro abatido por não pertencer ao Primeiro Mundo do que freqüentar banheiros europeus, porque, com exceção dos bons hotéis e residências modernas, as conseqüências podem ser dramáticas. Para mim foram e até hoje estremeço, ao remexer em velhas lembranças, não só minhas quanto de amigos meus, como o Genivaldo (nome mudado para proteger inocente), que até hoje não pode ver um luvão desses de pegar coisas quentes no forno, ou mesmo dos que são usados por bombeiros, garis e goleiros.

Genivaldo se transtorna ao ver esse tipo de luva porque já foi estudante pobre em Paris e, quando queria tomar banho, ou era obrigado a pagar ou então fazia o que podia, que era tomar banho francês. Para tomar banho francês, o freguês necessita somente de uma torneira e de uma luva especial. Em rigor, não é preciso nem ficar nu para tomar esse banho, porque ele consiste em umedecer a luva na água e esfregá-la pelo corpo. Ou seja, pode ser por baixo da roupa mesmo — e muitas vezes é, à beira de uma pia de corredor. Na pensão onde morou, Genivaldo era tido na conta de maluco porque, apesar de não considerar aquilo propriamente um banho, ele o praticava todos os dias. A senhoria o olhava com enorme desconfiança (além de um certo rancor, por ver tanta água gasta em práticas supersticiosas) e depois ele soube que ela tinha certeza de que ele só podia ser portador de alguma doença de pele exótica, que o obrigava a esse exagero.

Na área dos equipamentos, o principal é o famoso chuveiro de telefone. Em vez de um chuveiro normal, aparafusado à ponta de um cano, o que há é um objeto de aparência telefônica, atarraxado a uma mangueira coleante. Às vezes, esse aparato pode ser fixado acima da banheira e o sujeito finge melhor que está tomando uma ducha, mas ocorre muito ter-se de ficar segurando o esguicho com uma das mãos e esfregando-se com a outra, costuma dar coreografias interessantes. E, às vezes, como já ocorreu comigo num hotel de Lisboa, ele pode ser fixado, mas se recusa a ficar no lugar. Fixei um destes, abri a torneira, comecei o banho e aí, como uma espécie de busca-pé ensandecido, ele se soltou do suporte e passou a chibatear o banheiro todo, esguichando água para todos os lados. Imaginem a cena e a cara de minha mulher que, ao ouvir o barulho, entrou no banheiro, me viu naquela luta hercúlea e foi também atacada furiosamente. Quase chamamos o Exército, até eu conseguir agarrar o bicho pelo pescoço como quem agarra uma cobra (eu sei que cobra não tem pescoço, mas vocês sabem o que eu quero dizer) e desligar a torneira. E, quanto a bidê, esqueça, só tem daquele tipo chlep-chlep, sem esguicho e, embora raramente, com duas torneiras independentes, uma quente, outra fria. Ou seja, ou o padecente cozinha o traseiro ou o transforma numa pedra de gelo, opções a serem encaradas, imagino eu, com o mesmo desagrado. Sim, e houve também o bidê de um hotel luxuoso, em Erlangen, na Alemanha, se não me trai a memória. Esse tinha uma espécie de canhão projetando-se por baixo das torneiras. Você caía na besteira de ligar aquilo e recebia um tirambaço de água no posterior de derrubar hipopótamo, lembrava um pouco uma cena da batalha de tanques na 2ª Guerra.

No que se refere ao layout, as variações são de todos os tipos. Acho que a razão é que o banheiro antigamente só tinha o principal e, ao acrescentarem mais coisas, os reformadores iam juntando as novidades, uma pia ali, um telefone acolá, e por aí se foi. Há casas onde o vaso fica num recinto e as pias e os chuveiros em outro. Ou as pias no corredor e o telefone num quartinho e a banheira em outro, enfim, mais uma prova de que banheiro não é o forte deles. Em Stuttgart, uma certa feita, instalaram-me num quarto de hotel em que o banheiro ficava dentro de um círculo de plástico transparente, em frente às camas. Era certamente para casais em lua-de-mel não se perderem de vista nem na hora em que um estivesse sentado no trono, uma delicadeza de design.

E mais teria a contar, mas já não há espaço. Espero que, com estas informações, tenha dado uma modesta contribuição para uma postura nacionalista e patriótica em relação a nossos banheiros, provavelmente os melhores do mundo. Agora que a crise acabou, vamos reviver o orgulho nacional em todos os campos. Temos dentaduras, temos check-ups anuais e temos bidês, que mais podemos querer na vida?