A gente se acostuma a tudo

(João Ubaldo Ribeiro)

Acordei com pendores filosófico-sociológicos, com perdão da má palavra. É uma bela e ensolarada manhã outonal, em que uma brisazinha fresca balança as folhas dos pinhões roxos que agora resolveram dominar aqui o terraço. Faz muito tempo, trouxe uma mudazinha da Bahia e a plantei aqui. O pinhão roxo, como se sabe, tem notáveis poderes contra olho-grande, pragas, invejas e outros malefícios, sendo mesmo indispensável para os mais prudentes. Já fui informado de que sua eficácia é favoravelmente comparável a outras plantas de renome nesse importante setor de nossas vidas, tais como a arruda, a pimenteira e o comigo-ninguém-pode. A pimenteira, aliás, às vezes sucumbe ao olhão; daí a figura do "olho de seca-pimenteira", temidíssima em Itaparica e da qual até meu pai já foi vítima. O olhão desse seca-pimenteira em particular não só secou a pimenteira grande do jardim como tirou a voz e a inspiração de Carlos Galhardo, um curió de estimação e artista respeitado por todos, que nunca mais cantou direito, depois do mau-olhado.

A mudinha custou a medrar, cheguei a pensar que ia morrer de banzo. Esgarçada e parca de folhas, parecia uma planta do deserto. Adubada, creio que teve uma indigestão e passou moribunda mais de um mês, desenganada mesmo. Aos poucos, voltaram a brotar suas folhinhas mirradas e seus galhinhos esquálidos e ninguém dava nada por ela.

Tentei até falar inglês com ela (eis que inglês deve ser a língua das plantas, como a de todo mundo mais, neste caso por causa do príncipe Charles, que, segundo se divulga, quando não está jogando pólo ou querendo ser um tampax, está conversando com plantas), mas não obtive resposta. Entretanto, por trás das aparências, se escondia uma matriarca feraz e decidida, como se viu na súbita proliferação de exuberantes descendentes seus, em praticamente todos os cantos do terraço. Estamos hoje cercados por uma muralha de pinhões roxos. Não era bem o que eu tinha em mente, mas traz suas vantagens e já estou começando a gostar dessa nova floresta, a gente se acostuma a tudo.

A gente se acostuma a tudo, filosofo eu, depois de mais um passeio circunspecto de planta em planta. Altamente filosófico, pego os jornais e leio aqui como as praias cariocas, que já não eram essas coisas em tempos, digamos, normais, agora se transformaram em fossas sépticas.

Quem entrar na água certamente está desiludido com a vida e quer ter uma morte mais desagradável do que o estritamente necessário, uma hepatitizinha seguida de cirrose, quiçá um cólera, dermatites, infecções para todos os gostos, um verdadeiro festival. Imagino que poderá surgir até um cientista revolucionário que defenda a imersão nessas águas, encontrando virtudes terapêuticas e imunológicas no que poderá vir a tornar-se o famoso banho de merda do Rio. (Atenção: "merda" não é considerado chulo, mas, de qualquer forma, cartas de protesto para o editor da página, por favor.) Em outras circunstâncias, imagino que isso seria motivo de escândalo e revolta, mas a gente já se acostumou, acha tudo parte da ordem natural das coisas, assim como foi da ordem natural das coisas (culpa de Deus, aliás, que não coordena raios e trovões de acordo com nossas necessidades, a natureza é muito desorganizada, precisava de um Ministério do Planejamento, como o nosso) o apagão de algum tempo atrás. Se começar a haver apagões todos os dias, nós nos acostumaremos e até aprenderemos a marcar encontros para antes e depois do apagão do dia e aceitaremos comprar em qualquer papelaria a tabela dos apagões do mês.

Acostumamo-nos também a ser tungados com regularidade e sem reclamar, pois igualmente nos acostumamos a que reclamar não adianta e pode dar até cadeia. Acostumamo-nos e esquecemos, como esquecemos, por exemplo, os não sei quantos empréstimos compulsórios (expressão mais cínica, em todos os sentidos, não creio que possa haver, exceção feita a bombardeios humanitários e alegrias da velhice) que nos impingiram pela vida afora e nunca nos pagaram e nem vão pagar. Esquecemos de tirar o P da CPMF, que, aliás, não precisava nem existir, porque todo mundo já estava cansado de saber que, uma vez criado, imposto não se descria.

Esquecemos até mesmo que armaram um esquema para vender a todo proprietário de carro o tal kit de primeiros socorros, a que ninguém mais dá importância, mas que deve ter dado um rico dinheirinho a seus fabricantes e vendedores. Mas que houve de errado nisso, apenas pouco mais de R$ 10,00 por cabeça, custa nada ajudar industriais e comerciantes necessitados? O dinheiro já está nas mãos deles, foi tudo brincadeirinha, coisas de nosso divertidíssimo Brasil mesmo.

Também já nos acostumamos — e já estamos começando a esquecer — a que deputados que moram em Brasília recebam auxílio-moradia e se recusem a abdicar deles, porque se trata de um direito. De fato, é, está na lei e nós nos acostumamos a usar as leis para sacramentar privilégios. Se está na lei, é legal, mas não é necessariamente moral, ético ou justo.

Está na cara que é um absurdo o sujeito receber auxílio-moradia para morar onde sempre morou. Mas eles não só fixam seus próprios vencimentos, como fazem as leis que os afetam, de maneira que ganham o máximo que podem arrancar e ainda desfrutam de vantagens que se afigurariam descabidas, se já não estivéssemos todos acostumados.

Eu sei que é lugar-comum, mas minha filosofia não vai muito além disso. O governo é o que merecemos, os serviços são os que merecemos, as cidades são as que merecemos, as praias de merda são as que merecemos. Claro, poucos de nós reconhecem que temos alguma coisa a ver com o que ocorre, mas temos, pois, afinal, somos cidadãos e partes desse todo de que nos queixamos. Tenho certeza de que acharíamos formas de afirmar e exercer plenamente nossos direitos, se nos dispuséssemos a isso, mas o problema é que já nos acostumamos, a gente se acostuma a tudo.