Não sei como estão vocês, concidadãs e concidadãos, neste que espero ser um belo domingo outonal. Como já me queixei várias vezes, escrevo com desumana antecedência e praticamente não sei o que aconteceu na semana que passou. Deu ainda tempo para ver o ex-presidente do Banco Central sendo preso por se haver recusado a assinar um documento comprometendo-se a responder somente a verdade, se bem entendi. Quer dizer, eu chego a um lugar para depor, me pedem para garantir que o que vou falar é verdade e eu me recuso. Falo, mas não assino em baixo.
Claro, não seremos nós, neoburros ou burros velhos mesmo (eu sou ambos, me acho candidato sério ao Guinness, nessa área), que vamos compreender tais finuras jurídicas. Imagino que o dr. Francisco Lopes não crê que, com sua atitude, somos levados a inferir que ele iria mentir. Não, certamente que ele não iria mentir, apenas recusou-se a formalizar essa intenção, é muito diferente.
Que será que está havendo? Aqui, diante desse terraço hoje por acaso deserto de bem-te-vis — que devem estar todos em Brasília, bem-os-vendo —, pensou outra vez, embora com tranqüilidade, se não sou ou estou maluco. A tentação de achar que sim é grande. Sim, só posso estar maluco, depois de décadas dedicando a maior parte de minha vida a ler a escrever, neste trabalho solitário e puxado ao delírio, às vezes entretido em buscar insensatamente uma simples palavra ou expressão.
Maluco, coitado, nefelibata, arquiteta fantasias desvairadas e não sabe mais distinguir entre o que é real e não é. Deve ser isso, o mundo está me enganando.
Mas não acredito que seja o único a pensar assim. Tenho certeza de que muitos de vocês também suspeitam da sua sanidade mental. Ou pelo menos suspeitam de que a realidade é bem parecida com o que as piores teorias conspiratoriais e mais cabeludos boatos que já ouviram. O que está havendo? Que acham que nós somos? Ou, por outra, quem somos realmente nós? Porque, ao que tudo indica, somos mesmo o bando de otários obtusos, insensíveis, crédulos, dóceis e ovinos que secularmente nos tratam como se fôssemos (até agora, talvez vocês esqueçam, mas eu não; inventaram aquele kit de primeiros-socorros, se encheram de grana amparados na lei, acabou a grana, acabou o kit, ficou tudo por isso mesmo, não há escândalo).
Que foi que vimos em dias recentes? Sim, houve o assalto trivial e altamente profissional a um edifício no Flamengo, a bala perdida que matou um cidadão na cozinha de sua casa, assassinatos aqui e ali, o de costume. Ainda não importamos, graças a Deus, certas práticas americanas e rezemos para que a moda não pegue aqui. Isso tudo vimos, mas vimos muito mais. Numa sucessão estonteante, vimos claramente o que sempre soubemos, mas nunca nos tinha sido exposto com tanta intensidade. Vimos como o mundo em que vivemos realmente é outro, absolutamente outro, é outra dimensão. O mundo em que eles vivem não é acessível a nós, jamais saberemos nada do que efetivamente se passa por lá.
O ex-presidente do Banco Central não estava querendo falar, não sei se já falou? E, se falasse, contaria tudo? Não contaria, mesmo que quisesse, porque temos pleno direito de desconfiar de qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa. É cocaína em avião da Força Aérea Brasileira, é esquema de propinas em São Paulo, é superfaturamento por todos os lados, é remédio jogado fora por haver sido comprado em excesso, é comida atirada ao lixo, é gente "se alimentando" com sopa de água e sal. Agora, se não me enganam aqui as notícias, vão revogar a lei que dispensa impostos a carros comprados por deficientes físicos porque fraudavam a lei — ou seja, não se pode nem beneficiar quem precisa, pois aparece logo um esquema para alguém se locupletar ilicitamente.
A gente tem direito de pensar que há realmente uma dimensão que nos é vedada, a dimensão das consultorias que na verdade são instrumentos de espionagem e boataria, que há privilegiados e corrompidos em toda parte, que se fala uma língua que não compreendemos, que resolvem nossos destinos e gastam nosso dinheiro como querem, que não há ordem, nem respeito, nem moral, nem hombridade e probidade em parte alguma.
Como é que fazem isso, dezenas de milhões de dólares para cá como se fossem amendoins, centenas de milhões de dólares para lá como se fossem bananas, bilhões de dólares acolá como se fossem pamonhas? É lá, por baixo desses panos escuros, que tudo se passa e tudo se resolve. Como será, quantos recebem propinas e comissões, como será tudo isso estruturado?
Paranóia, não; sentimentos induzidos pelo que nos cerca, sim. Então não parece que o País é dirigido por quadrilhas encimadas por escroques geniais? Em toda parte, fareja-se maracutaia. Futuquem-se as polícias, lá estará a podridão. Vão aos Detrans, a mesma coisa. Vão aos bancos, idem, às estatais, às bolas, corretoras e financeiras idem, tudo idem, há bandidagem universalizada, há vigarice em cada canto? É assim que se vive? É assim que as coisas funcionam? Conversei outro dia com um amigo meu, grande empresário e ex-político, que me contou tanta coisa que me recusei a continuar a ouvir — as comissões, os por-foras, as contas no exterior, as fiscalizações extorsivas, as chantagens, as jogadas mais sórdidas concebíveis. Não escapa ninguém, nada está excluído?
Talvez não esteja maluco, afinal todos concordam em que sabem de tudo o que acabo de dizer e muito mais. Mas as novidades dos últimos dias não podem deixar de nos ter afetado. Vamos pelo menos aproveitar a lição pragmaticamente. O mundo lá deles é realmente outro, não temos nada a ver com ele, jamais teremos acesso a ele, seremos sempre comandados por ele. Haverá jeito? Confesso a vocês que já achei que dava jeito, hoje não acho mais. Vamos cumprindo o nosso papel, deve ser o nosso carma coletivo, enfrentemo-lo com a galhardia de sempre. Se bem que, no meu caso, um pouco tonto. Bastante, aliás. É triste compreender, a esta altura da vida que razão tinham os que nos advertiam de que quem trabalha não tem tempo de ganhar dinheiro, nós trabalhamos e eles ganham.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 02/05/1999.