Faz alguns anos, escrevi aqui uma crônica metida a séria, em que falei numa tal "poliarquia carioca". Nome artístico para designar o fato, cada vez mais óbvio e inelutável, de que estamos num regime singular, um feudalismo moderno, que não é definido somente por limites territoriais, mas por muitos outros, como os propiciados pela tecnologia e os criados por instituições e costumes. Os despachantes, para citar um caso, são um feudo, desde os que nos ajudam a vencer as dificuldades inventadas para vender facilidades, até os que atuam regularmente, segundo somos levados a desconfiar, nas altas esferas da República. Assim como os flanelinhas também são um feudo, ou vários feudos. E por aí vai, cada um pode contar quantos queira, há grande fartura deles.
Os morros dominados por traficantes são óbvios feudos territoriais.
Os cariocas já se acostumaram a ver o poder público exercido pelos traficantes nesses morros, a lei vigente por lá é a deles. Decretam feriados, baixam proibições, determinam comemorações, arbitram disputas, fecham ruas, mantêm entidades assistenciais, educativas e recreativas, prendem gente, matam gente. Legislam, administram, julgam e executam as sentenças. São, portanto, Estado. De vez em quando até fazem excursões a áreas de que usualmente preferem manter-se afastados, como quando andaram fechando o comércio do bairro das Laranjeiras, ou dão uns tirinhos para as bandas do Palácio. Ninguém, há muito tempo, se escandaliza mais com os pedidos de permissão aos suseranos para fazer qualquer coisa em seus domínios, como noticiaram que aconteceu com Michael Jackson e Spike Lee (e acho que aconteceu com Cacá Diegues também, vou perguntar a ele — a coisa não é só com estrangeiro, é com qualquer um que entra no feudo).
Os cidadãos se acostumaram tanto à situação que atendem sem contestar a qualquer determinação de quem seja ou pareça autoridade. Sem que sejamos nem cheirados nem ouvidos, resolvem o que bem entendem sobre o nosso dia a dia e, quando queremos usar as instituições criadas para sanar os abusos, vemos que elas agem dentro dos mesmos padrões, obedecem a lógicas e mecanismos criados por elas mesmas, se encaixam com as outras. É tudo uma teia meandrosa e intrincada, tudo se intercomplementando como num ecossistema de vastíssima complexidade. Se alguns malucos, só de curtição, vestirem macacões de aparência oficial, resolverem botar um tapume numa rua qualquer e começarem a esburacá-la, dificilmente ocorrerá a alguém, inclusive à autoridade, opor qualquer objeção. (Vocês me desculpem a repetição, mas até agora não engulo aquela história do kit-socorro; armaram um esquema para tomar nosso dinheiro, nos tungaram e agora deixa pra lá, fica por isso mesmo, é indecente demais, é sermos otários demais, qualquer golpe cola conosco.) Enquanto isso, continuamos também submetidos ao Estado em todas as suas esferas (e feudos e subfeudos), pagando impostos cada vez mais pesados e onipresentes e recebendo em troco muita aporrinhação e pouco serviço. Que serviços deveria prestar ele? Os básicos, pelo menos — educação, saúde, segurança, saneamento básico e poucos mais, a depender de quão liberalista se seja. Mas não os presta e, quando os presta, eles não prestam. Claro aparecerá sempre uma reportagem sobre as excelências de tal ou qual hospital ou instituto público, mas todo mundo sabe do panorama geral. Quanto à segurança, todo mundo também sabe o que é a loucura de viver numa cidade grande brasileira, acuado entre as grades dos edifícios e com medo da própria sombra. Já o saneamento básico, ou a falta dele, nos faz a todos, em maior ou menor grau candidatos a dengue, cólera, hepatite e a todas as outras ites infecciosas concebíveis.
O ponto a que chegou a relação do povo com governo foi eloqüentemente demonstrado pela notícia de que muitos velhos se recusaram a tomar parte no recente programa de vacinação, com medo de que fosse um projeto do governo para eliminá-los. Li alguém alegando que campanhas de vacinação sempre provocaram resistências, mas isso era antigamente. Hoje já estamos acostumados a elas e os velhos, na minha opinião, tinham lá suas razões, paranóicas ou não. Sabe-se lá, com esses rombos da Previdência, esses problemas com a assistência aos idosos... De repente a velharia morre mesmo, bota-se a culpa num laboratório ucraniano, lamenta-se profundamente, o presidente viaja consternado, instala-se uma CPI e põe-se de lado o assunto, como manda a tradição.
E não é que, bem em cima da história das vacinas, nos assombra agora o que fez o auxiliar de enfermagem de um hospital público do Rio de Janeiro? Se os velhos não tinham razão em ficar com medo da vacina, alguém teria razão em ficar com medo de que um profissional de saúde escolhesse pacientes para matar, a fim pegar uns trocados em funerárias (que sabiam ou não do que se passava, tem-se de pensar nisto também, nada aqui é impossível)? Antes, eram os remédios falsificados, sobre os quais, aliás, passou a reinar silêncio. E tudo por cima do descalabro, dos equipamentos desmantelados e despencados, dos médicos desmotivados e já cínicos como todos nós. E quem garante que a mesma coisa não é ou foi feita em outros hospitais?
Mas não há motivo para desespero, antes pelo contrário. Na época em que escrevi a crônica sobre a poliarquia, não vi que se tratava apenas de uma transição quiçá dolorosa e tumultuada, mas inevitável. É o processo de privatização levado a seus extremos lógicos e necessários.
O plano, que já está sendo posto em prática pelas próprias forças sociais, mas deverá ser ordenado em breve por uma MP, consiste em atos simples, como, por exemplo, terminar de privatizar a polícia, na trilha de bancos, condomínios, vizinhanças e edifícios variados. Com a justiça, idem. Criam-se associações cujos membros contratam seus próprios juízes e se comprometem (perante a justiça oficial) a cumprir-lhes as sentenças. E, assim, casaremos finalmente o ideal com a realidade, dançaremos conforme a música. Tenho confiança na criatividade nacional e na versatilidade do mercado, criarão pacotes para qualquer faixa de renda, cooperativas, cestas de segurança básicas (não sei se estupro entrará nela, eis que li alhures que é a mulher quem provoca), tudo nos eixos, tudo repensado de acordo com as exigências da modernidade. Não dá nem para imaginar todas as oportunidades que surgirão. E o Estado acabará? Não, não, claro que não, também aí já é demais. A parte não privatizada precisa permanecer, pois não só terá algumas funções residuais como não queremos causar um grave problema social. Neste país, sempre haverá lugar para tudo e todos, é só repensar.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 16/05/1999.