— Quanto tempo tem que tu não é assaltado? Aliás, eu tenho ouvido muito pouca história de assalto aqui, antigamente era todo dia.
— Ah, mas eu sou recordista. Se você fizer uma pesquisa aqui, todo mundo tem assalto recente pra contar, eu não. O último já faz mais de cinco anos, ninguém acredita.
— Eu acredito, o último a ser assaltado lá em casa foi minha filha, no ônibus. Mas tudo bem, ela não estava com nada e o cara só levou o relógio e seis reais. E isso já tem uns três anos. E eu já devo estar chegando nos quatro sem assalto. Mas você tem razão, ninguém acredita.
— Eu acho que isso não é por acaso, sabia? Eu tenho uma teoria sobre isso, eu acho que esse tipo de assalto pé-de-chinelo vai acabar, os novos tempos não comportam.
— Como não comportam? Todo dia a gente lê que teve assalto e só não lê mais porque ninguém quer se dar ao trabalho de ir na polícia, porque não adianta nada e é só mais aporrinhação.
— É, mas vai acabar, você vai ver. Quer dizer, esses assaltos pra pegar cartão de banco talvez continuem, em pequena escala, mas o pé-de-chinelo mesmo vai acabar. Vai ser coisa assim meio pré-histórica, coisa da antiguidade. O pé-de-chinelo ou compreende que tem de evoluir ou a polícia pega, esses a polícia pega fácil, ou senão mata logo, que, aliás, eu não partilho dessa veadagem intelectual e sou a favor.
— Sei não, sei não. Com cada vez mais gente desesperada aí, gente que não tem nada a perder...
— Não se trata disso. Por exemplo, tu tem ido a médico ultimamente. Ou dentista?
— Não.
— É que tu é bem mais moço do que eu, espere os cinqüentinha, cinqüentinha e pouco, tu vai te arrepender de ter nascido, igual que nem Jó. Mas isso é outra conversa. Tu não sabe da nova modalidade de assalto?
— Assalto a consultórios?
— É, mas com sofisticação de Primeiro Mundo. Eles marcam consulta, cara, é tudo organizado. A moça marca consulta, vai com um pilantra que ela diz que é marido e os dois entram no consultório e levam tudo, do médico e dos clientes. É tranqüilo, porque eles arrancam os fios dos telefones, afanam os celulares e trancam todo mundo lá dentro, às vezes eles são tão organizados que trabalham vários consultórios do mesmo andar, no mesmo dia. É o que eu digo, tu não tá sabendo de nada. Agora os médicos estão botando porteiro eletrônico e já conheço pelo menos um que vai dar senha confidencial aos clientes, igual a banco. Não digitou a senha certa, não tem atendimento, é a sofisticação.
— Meu Deus do céu!
— Tu tá mesmo por fora, tu tá tão besta que é capaz de sair com a camisa do teu time em dia de jogo, tu tá expondo a vida, cara, tem que se adaptar aos novos tempos! Atualmente, sair vestindo a camisa do time já é considerado tentativa de suicídio, ou então o próprio.
— Eu não saio com camisa de time.
— Pois é, não pode, é convite pra ser morto de porrada, tem que compreender que não é como antigamente, eu sei que é duro, mas não há como vencer, senão se adaptando. Eu mesmo agora estou dando preferência a médico e dentista modernos, com senha secreta. Assim pelo menos eu sei que todo mundo que está na sala de espera tem senha, mesmo que roubada, dá pra pegar pelo menos os caras que executam o assalto.
— Não, nesse caso dá pra pegar todo mundo. Claro que dá pra pegar todo mundo.
— Tu tá pior do que eu pensei. Tu tá no século passado. Tu desconhece a criatividade do brasileiro. Tu pensa que quem faz é quem bola?
— Não entendi.
— Claro que não entendeu, tu tá na Idade Média. O negócio agora é todo terceirizado, a tendência é essa, ninguém quer manter uma organização dispendiosa, tem que fazer o downsize.
— Continuo sem entender.
— É o seguinte: tu tá precisando de uma grana, a loteria não sai, tu não é dono de banco, tu não tem informação privilegiada nem grampeia telefone pra faturar, o jeito é recorrer à redistribuição de renda na marra, ou seja, por exemplo, seqüestrar um cara, uma atividade que já tem muito know-how na praça. Mas tu é uma pessoa de boa formação, não quer fazer o trabalho sujo, acorrentar o seqüestrado, ficar telefonando pra família com ameaças, dar porrada no seqüestrado, cortar orelha, essas coisas. Então tu contrata uma empresa especializada, terceiriza.
— Não acredito. Empresa, empresa mesmo? Mas como é que o cara ia registrar uma empresa de seqüestro? Você tá delirando.
— Oh santa ingenuidade! Pode ser empresa de qualquer coisa, cara, qualquer empresa, não precisa botar lá que é de seqüestro. E também não precisa registrar, é opcional, o importante é a terceirização. Está tudo se organizando agora. Ninguém se mistura, cada macaco no seu galho, a especialização está cada vez mais valorizada. Quer assaltar um banco? Terceiriza tudo aquilo que você não quer fazer pessoalmente. A mesma coisa com qualquer outra iniciativa. Claro que isso só em relação a certos crimes, ninguém vai terceirizar estupro, por exemplo.
— Não duvido. Depois do que você está me dizendo, não duvido, o ser humano é capaz de qualquer coisa.
— É, de repente a informática progride mais e o mandante do estupro entra num barato virtual, é mesmo, tudo é possível neste mundo. Mas, em matéria de assalto, roubo, furto e assassinato, pode escrever o que eu digo, não vai haver mais lugar para os pequenos, é a realidade de hoje.
— Tu não fica preocupado, não?
— Ficar, eu fico. Mas estou esperando a hora que vão achar um jeito de terceirizar as preocupações, vão acabar achando um jeito. Eu tenho muita confiança no futuro.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 06/06/1999.