Inverno do descontentamento

(João Ubaldo Ribeiro)

Olhando para o céu, aqui do terraço, procuro no horizonte sinais do aparecimento de um solzinho, mesmo esse solzinho mixuruca de inverno, mas que pelo menos trará uns instantes de calor a meus ossos entanguidos. Nunca fui bom em matéria de prever o tempo e vaticinar chuvas e ventos, como meus conterrâneos de Itaparica, que nem precisam olhar para cima para saber se vai cair um toró ou se o mar vai se encapelar. Fazendo ares de lobo-do-mar condescendente com os ignorantes meteorológicos, mentia de vez em quando, se instado por algum visitante a me pronunciar, mas não ficava por perto, para não ver minha previsão quase invariavelmente desmoralizada. Entretanto, não é preciso ter nenhum talento ou experiência para saber que o astro-rei não está com intenções de dar o ar de sua graça e, mais uma vez, visto uma camiseta térmica e uma camisa grossa por cima, esfregando as mãos para esquentá-las, porque até o teclado do computador parece ter saído da geladeira.

Vejam vocês como é a vida. Antigamente (cada vez mais tudo é antigamente, não é justo), eu gostava de frio. Aliás, nem sentia muito frio e, quando vi neve pela primeira vez (em Nova York, tão antigamente que me recuso a lhes revelar o ano), escandalizei um recepcionista do hotel, ao ir, sem agasalho, dar uma voltinha pela calçada, só para sentir os flocos caindo em minha cabeça e vê-los se acumulando sobre a rua. Bem verdade que, dias mais tarde, enfrentando o vento encanado da então charmosa Washington Square, minhas orelhas se enrijeceram e fiquei com a sensação de que, se alguém lhes desse um piparote, elas se soltariam da cabeça pela base. Mas continuei a achar exageradas as queixas dos outros contra o frio e cansei de dizer que devia ter sido esquimó em outra encarnação, para me dar tão bem em climas glaciais.

Deve ser a idade, tudo é a idade. Quanto mais velho se fica, mais se sente frio, sempre me contaram. Com certeza é verdade, a cuja face cruel se adicionam cada vez mais fortes evidências de que o mundo vai acabar uma hora destas, como nos asseguram desde ambientalistas a nostradamistas. Claro que vai acabar, onde já se viu um Rio de Janeiro mais frio do que coração de banqueiro, em que até o comércio de lareiras, segundo leio aqui nas gazetas, vem se beneficiando — e eu que nem sabia que se vendiam e construíam lareiras cariocas. Como queixar-me do governo não me parece legítimo neste caso, queixo-me de São Pedro, de La Niña, das frentes frias e do que mais seja responsável por esta situação inaceitável. E agora, repentinamente, me vejo na mais renhida oposição a quem está curtindo esta algidez que chegou a me tornar objeto da caridade pública, quando, tiritando na esquina em estado pré-terminal, fui socorrido por um casaco emprestado e uns tabefes nas costas, até conseguir voltar para casa, escorraçado por um lufada ártica que se comportava como minha inimiga pessoal.

Não, não, vocês podem estar adorando comer fondues, vestir quilos de roupas quentes e, nos casos mais extremos, ver fumacinha saindo da boca ao falarem, mas a reviravolta em minhas posições antigas se consolidou definitivamente. Frio não está com nada e agora, louvando-me na minha experiência pregressa, estou pronto a apresentar argumentos ponderáveis contra quem quer que lamente não termos nevascas nas Paineiras, nem podermos patinar numa lagoa Rodrigo de Freitas solidificada pelo inverno. Não é à toa, podem crer, que a gringalhada nórdica vem para cá e, mesmo submetida a um assaltozinho ou outro volta e meia, não quer voltar, até porque conhece os efeitos a longo prazo dos climas frios.

Frio, para começar, ocasiona distúrbios emocionais e mentais de alguma seriedade. Já morei em lugares em que passei meses sem ver o sol e todo mundo pirava em função disso. Em Berlim, por exemplo, onde o verão costuma cair num domingo, o pessoal entra em desvario assim que um raiozinho de luz se esgueira através das nuvens, ou, portento dos portentos, o céu não está nublado. Nenhuma mulher desfila nua da cintura para cima, pelo menos que eu tenha visto (no Canadá elas desfilam, agora é um direito sacramentado por decisão judicial e tomar ousadia com a moça dá cana), mas o resto todo mundo faz e não me esqueço da visão, às vezes comovente e sempre perturbadora, de mulheres de todas as idades botando os pés em cima das mesas dos cafés ao ar livre e mostrando até, digamos assim, as amídalas. E dos parques e beiras de lagos, com todo mundo pelado e agindo como se tivesse acabado de ganhar na loteria. Quem já viu um jogo de vôlei unissex, disputado por coroas e corôos do meu tope para cima, todos sem nada em cima do corpo, jamais apagará da lembrança espetáculo tão traumatizantemente inesquecível. Os saltos e cabriolas a que o vôlei leva balança tudo o que a idade faz despencar e posso garantir que já fiz programas melhores.

E posso recordar testemunhos pungentes de amores irrealizados. Sim, concordo, embora a memória me venha se tornando cada vez mais nebulosa nessa área, em que um friozinho pode ser estimulante para o atletismo amoroso, em baixo de cobertas e edredons. Mas isso não previne um grande número de episódios lamentáveis de desistência, pelo menos quando o casal chega da rua todo agasalhado. Vamos ficar só com o exemplo da situação da mulher, para não encompridar demais as coisas.

Ela chega, tira o gorrinho, o cachecol e o casaco, as luvas. Vem a vez do pulôver, da blusa, da eventual camisetinha e do sutiã. Em seguida, a saia blindada. Logo depois, a retirada, freqüentemente laboriosa, das botas, normalmente com a ajuda do rapaz, a quem se aconselha ter bom preparo físico para a tarefa. Depois das botas, as meias, que nem sempre estão dispostas a colaborar. E aí, após a exaustiva labuta, se inicia o desvestir do homem que, quando chega às ceroulas, já prejudicou um pouco a concentração, para não falar na encheção de saco de tanto puxão e atiçamento de toneladas de pano para um canto. Em verdade lhes digo, muitos já me contaram que desistiram e preferiram passar a noite recitando Hölderlin ou ouvindo um Wagnerzinho.

E a neve, emporcalhando tudo, enlameando as calçadas e transformando os pés em picolés? E o gelo no chão, causando escorregões que ganhariam concursos de saltos olímpicos? E o fartum azedo ou bolorento que se entranha em tudo, por causa das janelas permanentemente fechadas? E a necessidade de passar dez minutos se vestindo para dar um pulinho ao supermercado? Pelo que tenho visto, é o que este começo de século e suas loucuras climáticas começam a nos reservar. Protesto, protesto.

Vou ver se alguém no zoológico me arruma suco de urso, para eu tomar uma injeção e hibernar, vejo vocês na primavera.