Claro que os que me conhecem dirão que ainda estou mordido com o papelão que o Vasco fez, na decisão do campeonato carioca. Verdade, estou, embora nem de longe como nos tempos insensatos em que passava semanas de cabeça inchada, entrava em discussões quase aos sopapos e até estragava amizades. Ando meio olímpico de uns tempos para cá, gostando mais de ver futebol pelo prazer do espetáculo do que propriamente pela vitória de um ou outro time. Apesar de minhas simpatias corintianas, torci empenhadamente pelo Palmeiras, na disputa da Libertadores. E, se fosse o Flamengo que tivesse perdido para o Real Madrid, lá em Tóquio, eu não teria feito a festa que os flamenguistas fizeram porque o Vasco foi derrotado. Ouso mesmo revelar — talvez para escândalo e revolta tanto de vascaínos quanto de rubro-negros — que sou um vascaíno que não tem raiva do Flamengo. Não é demagogia, não; o Flamengo, como também o Vasco, é uma importante instituição nacional e a vida ficaria muito sem graça se eles deixassem de existir.
Mas o futebol tem complicado as coisas, para velhos apreciadores como eu. Podia fazer a pergunta machadiana e indagar se terá mudado o futebol ou terei mudado eu. Mudamos ambos, certamente, mas o futebol mudou mais e afeta centenas de milhões de pessoas, enquanto eu só afeto o pessoal de casa mesmo, e olhe lá. Posso ser tachado de reacionário e talvez haja alguma justiça neste julgamento, além de que provavelmente serei xingado pela torcida do Palmeiras (injustiça, injustiça, eu vibrei com sua taça e participarei da corrente de Tóquio), mas, ainda que tardiamente, junto-me, por exemplo, aos que acham que cortar Edílson da Seleção por causa do que ele aprontou é não gostar de futebol, pelo menos como eu gostava.
Certo, certo, ele provocou um tumulto, ao curtir com a cara do time e da torcida do Palmeiras. Faltou juízo, assim como também faltou juízo a quem reagiu com violência. Penso mais ou menos como o insuspeito Felipão, técnico do Palmeiras. Nada que um bom sermão, uma aulazinha de prudência, senso de conveniência e maturidade, não pudesse curar.
Agora, cortá-lo da Seleção? Dar mais um largo passo para acabar com a molecagem inerente a nosso futebol? Garrincha, provavelmente, estaria fora de todas as convocações. E o gol de bunda, onde é que fica, não se poderá mais fazer gol de bunda? Ou de letra ou calcanhar, com a meta escancarada? Não se poderá mais passar a bola pelo meio das pernas do adversário (sir Stanley Matthews, uma vez em Wembley, passou a bola pelo meio das pernas de Nílton Santos e olhem que estou falando em Nílton Santos), ou dar um chapéu para lá e outro para cá, só para enfeitar? Claro, os limites são difíceis de precisar, mas isto também faz parte do futebol, ninguém torna matemático o futebol, nem o transforma num conjunto de atos previsíveis. Daqui a pouco, o Luxemburgo vai querer que os jogadores usem a gravata que ele, colonizadamente, não dispensa e comparecerá de smoking às grandes decisões. E não desacredito que, em breve, alguém proponha multar o time que der olé e o torcedor que gritar olé, vamos deixar de ser ridículos, futebol está no cerne de nossa cultura e não se pode sair mexendo assim nas suas tradições. Edílson errou, mas, além de muito jovem, foi vítima de sua (nossa) própria cultura e não merecia castigo tão severo.
Quanto às regras novas, não sou grande autoridade no assunto (aliás, nem nas velhas tampouco), mas até concordo com a que não permite aquela sem-vergonhice que se praticava antigamente, atrasando-se a bola para o goleiro o tempo todo, para ele segurá-la o o mais longamente possível, fazer nova troca de passes e esfriar o jogo conforme sua conveniência.
Mas por que pode de cabeça ou peito? Se, ao receber um passe chutado por um jogador de seu próprio time, o goleiro perde o direito de pôr as mãos na bola, por que esse direito não lhe é retirado também, se o passe é de cabeça? Passe é passe e, se o objetivo era tornar o jogo mais dinâmico, não vejo o motivo para exceção tão besta.
E as outras idéias de modernização, tais como parar o relógio, como em basquete ou pedir tempo, como em vôlei, só para as tevês americanas acertarem os comerciais dela? E abolir o impedimento? (Está certo que é uma regra difícil de aplicar e que todo mundo discute as marcações, com exceção das mais clamorosas banheiras, mas isso também faz parte do futebol, acabar com essas discussões também ajudam a tirar a graça). E cobrar lateral com os pés? Jamais teríamos visto o poderoso Djalma Santos pegar a bola do lado de fora da intermediária e, praticamente com uma só mão, lançar a bola à área como quem cobra um escanteio. E não sei quantas frescuras mais que querem inventar, para "popularizar" o futebol, como se ele, de longíssimo, já não fosse o mais popular esporte do mundo, exatamente como é jogado hoje?
E o juiz ladrão, como é que fica o juiz ladrão? Alguma entrevista do técnico ou cartola perdedor teria graça, sem poder haver juiz ladrão? E a torcida do time que perdeu, que seria dela sem o juiz ladrão?
Evidentemente, gostaria de que os juízes acertassem em 100% dos casos e não existissem de fato juízes ladrões, mas a extinção da possibilidade de alegar ladroagem é querer tornar o futebol politicamente correto, futebol não é politicamente correto, pelo amor de Deus conservemos alguma coisa que não seja politicamente correta.
Rever as marcações do juiz por um telão no estádio, como andam sugerindo, é mais uma tentativa de solapar a cultura nacional, podem botar meu nome em qualquer abaixo-assinado contra isso.
Bem, não adianta chiar. A Copa América já está aí (ao escrever, ainda não sei o que houve no jogo contra a Venezuela; e o da Letônia, vocês hão de convir que não valeu, era o Brasil apenas se desvencilhando de uns rapazes que ficavam na frente da bola, à qual muitos mal tinham sido apresentados ainda) e ninguém segura o progresso. Como esse de o Japão, segundo entendo do que leio — corrijam-me, se estou caduco —, participar da Copa América. Imagino que daí advirão grandes conquistas.
Não só incorporaremos o Japão à América como também verificaremos a alegação de que os nipônicos ganharão a próxima Copa do Mundo na correria, porque vão poder substituir todos os jogadores o tempo todo, sem que ninguém note a diferença. Precisamos prevenir esse tipo de ocorrência, disso depende a sobrevivência do futebol. Do futebol de vocês, quero dizer, porque do meu já estou prevendo que vou me despedir um dia destes.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 04/07/1999.