Por que não botam logo uma coleira?

(João Ubaldo Ribeiro)

Fala-se muito, hoje em dia, principalmente no Brasil, sobre o encolhimento do Estado. O Estado deverá restringir-se, como no liberalismo clássico, a funções essenciais — segurança, educação, saúde e mais duas ou três atividades. Foi apenas para isso que ele teria sido criado, ou pelo menos deveria ter sido. Fala-se mesmo na extinção gradual e inexorável das soberanias nacionais. Tudo entra na globalização, tudo é de todo mundo (conforme a vontade dos americanos, é claro, mas isto é apenas um pormenor circunstancial, porque, mais século, menos século, eles deixarão de fazer com os outros o que lhes der na telha; quem viver, verá) e o mercado cuidará do resto, tudo se ajustará mais ou menos automaticamente.

O Brasil, com sua originalidade proverbial, percorre esse caminho de uma forma muito específica. O Estado soberano está indo embora, sim, encontramo-nos sob o controle firme do FMI e a orientação, embora um tantinho errática, do mercado, que, em nosso caso, sofre de renitentes crises de nervosismo. (Aliás, por que alguém não tem a idéia de dar Lexotan, ou equivalente, ao mercado? Existirá algum de vocês que não esteja de saco cheio de ouvir falar no nervosismo do mercado? Hoje mesmo, antes de eu começar a escrever, o mercado estava com os nervos em frangalhos, o dólar subiu, as bolsas desceram e o clima era de semi-histeria. Acho que, pelo menos, poderiam inventar uma especialidade nova na psiquiatria, dedicada ao equilíbrio emocional do nosso mercado, é carreira futurosa.) E a ingerência do governo na vida em geral vai, segundo se diz, também diminuindo, como se pode inferir, por exemplo, das privatizações e seus resultados por enquanto esplendorosos.

Ouso, contudo, discordar dessa avaliação. O Estado (ou o governo, como é mais fácil de entender para todos), inclusive o americano, continua a se meter na vida de todo mundo. Segundo entendo, por exemplo, o cidadão brasileiro não pode fazer um plano de saúde de acordo com suas necessidades. Para protegê-lo, o Estado obriga os planos a cobrir o que não queremos, nem precisamos que eles cubram, como no meu caso pessoal. Se por acaso eu vier a ficar grávido, meu plano de saúde é obrigado a custear todos os gastos, do pré-natal ao pós-parto. Para isso, eu pago mais caro, com o pequeno senão de que considero bastante remota a possibilidade de ficar grávido, mas nada neste mundo pode ser perfeito.

Meter-se na vida dos outros, e não só por parte do Estado, vem se tornando um fato cada vez mais inelutável. E tem até gente que goste, como os proprietários de certos celulares. Claro que há quem precisa de celulares para trabalhar, mas outros, suspeito que a maioria, o utilizam como uma coleira de mão dupla, através da qual podem sempre ser monitorados, ou monitorar os outros (no meu caso particular, como já disse, quem quiser que eu corte relações com ele ou ela, basta me dar um celular de presente). É um acessório excelente para o fascismo inerente ao controle do comportamento alheio e quem sabe se, num país em que o presidente acha que nossa meta de vida é aprender inglês e navegar na Internet, não seremos todos obrigados (através da criação de Contribuição Provisória — Permanente, mas não se pode quebrar a tradição) a ter um celular?

As explicações para a intromissão são muitas vezes altissonantes. O cigarro é um exemplo. Deve-se proibir todo mundo de fumar até dentro de casa (nos Estados Unidos há condomínios residenciais onde quem fumar vai posto para fora e o prefeito de uma cidadezinha quase conseguiu que se proibisse o fumo em toda ela, mesmo o fumante estando sozinho e ao ar livre), não só para proteger o indivíduo de sua própria insensatez, como também a coletividade, pois o que se gasta, em saúde pública, para lidar com as doenças causadas pelo tabaco, atinge patamares cada vez mais altos. Certo, muito certo. Mas beber também faz mal e a bebida não é proibida; antes pelo contrário, vão agora nos obrigar a beber a mesma cerveja. Comer gorduras saturadas também faz mal e ainda não se proibiu passar manteiga no pão. Não fazer exercícios também faz mal e ainda não se instituiu (bem verdade que o presidente nos exortou a pelo menos fazer um check-up anual, mas não passou de uma exortação a que, como sempre, a burrada nacional, excessivamente preocupada em não passar fome ou dormir debaixo do viaduto, não prestou atenção) a matrícula compulsória em academias de ginástica. Aliás, a lista do que faz mal à saúde, que só tem o defeito de mudar todos os dias, como acaba de acontecer com a redenção do ovo e da carne vermelha, é infinita e quiçá sejamos forçados, no futuro, a preencher um relatório mensal do que pretendemos comer ou fazer, para obter a permissão oficial.

Na órbita privada, os progressos também são marcantes. Leio aqui que, no Japão, vende-se um spray que a mulher aplica na cueca do marido, ou o marido na calcinha da esposa, o qual detecta vestígios de esperma. Um detector de corno, com perdão da má palavra. A cueca ou a calcinha pegam manchas verdes, denunciando a transgressão. Na mesma linha, vem o gel que se passa nas costas do fiscalizado, porque, se ele tomar banho fora de casa, a pele assume cores exóticas. Finalmente — juro a vocês que não estou inventando nada —, criaram-se meias que mudam de cor, se o sujeito as tirar por mais de 15 minutos. Ou seja, ou vai de meia mesmo, ou vai de ligeirinha. Para inventarem uma pastilha que deixe o sujeito de língua azul, se ele fumar ou comer torresmo, acho que é um pulo.

Bem, talvez haja até quem aplauda essas grandes novidades. Quanto a mim e, espero, alguns companheiros e companheiras, preferia sinceramente que não me protegessem tanto assim. Mas, já calejado por esta vida ingrata, aguardo com resignação o momento em que me mandarem tirar carteirinha para poder ir à padaria ou ao cinema. E acho que não me oporia muito até que me pusessem mesmo uma coleira eletrônica no pescoço. Pelo menos disfarçaria as pelancas, há sempre um lado bom em tudo.