Para quem não sabe ou não se recorda, tenho que explicar. Já escrevi aqui duas vezes a respeito de como a mulher de Ruy Barbosa (sei que a norma culta agora manda usar i, mas, se eu grafar "Rui", corro o risco de ser linchado na Bahia), ao perceber que não teria ocorrido a seu marido estabelecer preço para os serviços que lhe confiavam, chamava o freguês e observava discretamente que ele tinha de pagar pelo trabalho.
— O conselheiro come... — lembrava ela.
O conselheiro, que por sinal passou dos setentinha, façanha digna de nota em sua época, deve ter sempre comido adequadamente. Mas, metaforizando-o para os dias de hoje, está cada vez mais difícil o conselheiro comer. Nós, brasileiros, costumamos conceber o trabalho intelectual ou artístico como algo que devia ser pago pelo governo, ou qualquer coisa assim, ou então não devia ser pago de forma nenhuma. Na verdade, creio mesmo que há uma conspiração em andamento para acabar com o trabalho intelectual, obrigando os nefelibatas que se dedicam a ele a procurar coisas mais sérias para fazer, como construir prédios auto-implosivos na Barra da Tijuca.
Lemos que Bill Gates, dono de 20% da Microsoft, é o homem mais rico do mundo e sua empresa vale mais do que as economias de muitos países. Mas o patrimônio de sua empresa não é físico. É intelectual, está no que produzem as cabeças a que ele paga (bem) para pensarem para ele. Em todo o mundo, sabe-se que o capital do presente é o conhecimento. E se investe prioritariamente em educação, pesquisa e cultura em geral. Mas aqui, não. Aqui, a começar pelos professores de todos os níveis, educação chega a parecer um luxo e os profissionais que se dedicam a ela recebem às vezes salários que seriam considerados insultuosos como esmola no Buraco Negro de Calcutá.
Não passa pela cabeça de ninguém, porque é amigo do dono da padaria, pedir-lhe fornecimento gratuito de pão, bolo ou café. Mas, se a mercadoria não é propriamente física, pagar é um absurdo, pois quem produz essas coisas vive de brisa e, ao exigir retribuição, mostra-se um vil mercenário, que só pensa em grana. Até a pirataria de livros, discos, cassetes, programas de computador e outros é vista com naturalidade e são considerados otários os que, entre comprar o livro e pegar uma xerox baratinha do trecho que lhes interessam, escolhem a primeira opção. E, como se as empresas e os profissionais que produzem tudo isso não precisassem de remuneração, são até rancorosamente acusados de gananciosos. Só que, naturalmente, no dia em que a pirataria for regra geral, ninguém mais vai escrever, compor, desenvolver ou publicar coisa nenhuma, vai ter é que procurar um emprego que lhe dê um dinheirinho.
Posso falar de cadeira, porque, entre cada dez telefonemas, nove são para que eu trabalhe de graça. Não é trabalho, aliás, que trabalho é para mim escrever 40 linhas aqui, 120 acolá, ler 400 a 800 páginas de originais por dia, fazer palestras, dar entrevistas — e isso tudo sob a permanente pressão de não dar uma escorregada, porque, se der, caem de pau? Não sou só eu, naturalmente, é todo mundo mais ou menos de meu ramo. Meu festejado colega Mario Prata, por exemplo, acaba de receber desvanecedor convite para comentar futebol, numa cadeia nacional de televisão. Sim, quanto pagavam? Nada, claro, ficaram até muito decepcionados porque o Mario falou em dinheiro, pensavam que ele era sincero, ao professar amor por futebol.
E mais muitas outras ele me conta, não só dele como de outros padecentes.
Quanto a mim, creio que o repertório atinge os índices olímpicos sem dificuldade. Tenho duas ou três novidades ilustrativas. Uma é um grande banco, que está promovendo um concurso literário de monta, coisa importante mesmo. Aí me telefonaram. Haverá uma comissão julgadora, que lerá os milhares de originais (ou livros, não sei bem) que certamente serão submetidos e fará uma triagem. Sobrarão pouco menos de 40 títulos para três prêmios finais. A atribuição desses três prêmios finais caberá a uma comissão de notáveis, para cuja composição eu estava sendo convidado. Mui honroso, pensei, mas quanto pagam por esse trabalho? Nada, obviamente, onde já se viu? E perdi mais essa chance de participar de uma comissão de notáveis, não agüento mais a frustração.
O segundo exemplo é de um canal de tevê internacional, se não me engano exclusivamente a cabo, que todo mundo conhece. Está fazendo um programa, ou série de programas, sobre os 500 anos de Brasil.
Telefonaram-me (só porque escrevi um livro chamado Viva o Povo Brasileiro, virei brasileirólogo, nunca mais me liberto disso). Eu falo inglês? Falo, sim, senhor. Ah, muito bem, então estou convidado para dar uma entrevista em inglês, a ser exibida no dito programa.
Perguntas sobre o povo brasileiro, explicações, interpretações, essas coisas bobas que qualquer um pode fazer em cinco minutos, com segurança e em inglês. Pois não, pois não, quanto pagam por esse trabalho? Nada, naturalmente, e lá se foi a chance de eu me exibir falando inglês na tevê internacional.
O pior é que tem muita gente que topa e, assim, trabalhadores como o Mario Prata e eu continuam repulsivos mercenários. E também se aceitam "pagamentos simbólicos", embora o supermercado da esquina se recuse a receber símbolos. Enfim, imagino eu, tudo pela glória. No meu caso, infelizmente, tenho de deixar a glória para depois, o conselheiro persiste em comer. Até mesmo porque descobri que o banco a que pago para guardar meu dinheiro (não digo o nome porque quem acaba sendo preso sou eu) tem um sistema de segurança falho, que permitiu que alguém clonasse meu cartão, soubesse minha senha e me depenasse aos bocadinhos durante meses. Agora tenho de me virar; vou ali, pedir uma cesta básica às Musas.
P.S. — O destino é cruelmente irônico: hoje é o dia do escritor. Pelo menos dê qualquer coisinha a seu escritor favorito
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 25/07/1999.