Como se não bastassem as agruras inerentes à lide ingrata das letras, que me acossam desde a infância, ainda tenho de passar por esta: escrever com a sensação meio besta de que nem eu mesmo vou ver estas linhas impressas, já que o mundo terá acabado na sexta-feira passada (futura, na hora em que escrevo, eta profissão esquizofrênica). Bem verdade que é bastante possível que eu ainda esteja vivo, ao contrário da maioria de vocês, graças à minha por vezes vantajosa condição de baiano. Uma repórter de São Paulo me telefonou para saber o que eu ia fazer na véspera do fim do mundo e respondi que, baiano sendo, ainda não tinha pensado nisso, mesmo porque, segundo reza a tradição e dizia Otávio Mangabeira, quando o mundo acabar a baianada só vai saber uns cinco dias depois. Além disso, existe a respeitada convicção de que o dr. Antônio Carlos conseguirá um adiamento, pelo menos até depois da Lavagem do Bonfim, não se pode subestimar o homem, eu sempre avisei.
Tenho uma certa experiência de fim de mundo. Meu pai era muito chegado a um fim-do-mundozinho e Nostradamus, em várias edições — inclusive em francês arcaico, que o velho quis que eu aprendesse a ler e só desistiu quando eu já apresentava sinais alarmantes de demência precoce —, aparecia de volta e meia em nossas tertúlias domésticas e o tratávamos com grande familiaridade. Ninguém entendia nada, mas meu pai sempre achava um jeito de encontrar um anúncio do fim do mundo em alguma data próxima, a ponto de minha mãe, durante um certo tempo, ter passado a perguntar a ele em que dia o mundo ia acabar naquela semana.
"É só pra ver se faço a feira, ou não", dizia ela. "O que é que Nostra está dizendo hoje?" O Apocalipse, o Fim dos Tempos e o Juízo Final também sempre tiveram cartaz lá em casa, assim como o anticristo. Volta e meia meu pai identificava um anticristo na vizinhança e a gente ficava um tanto cabreira, até o velho mudar de idéia e resolver que o anticristo era algum presidente americano, ou qualquer coisa assim. Meu cretinismo espacial-topográfico, que já era grave nessa época, vem piorando com a idade e faz com que eu ainda tenha de raciocinar para distinguir o lado direito do esquerdo, me levava a passar horas levantando as mãos alternadamente e falando "direita, esquerda", para estar seguro de que acertaria a me espremer num lugarzinho à direita de Deus, na hora em que Ele separasse os condenados ao inferno dos abençoados com o céu.
Também testemunhei, lá se vão, ai de mim, uns 50 anos, o eclipse total que escureceu parte do Brasil (ou todo ele, não sei bem; para mim o mundo era Aracaju, Itaparica e o Sítio do Pica-pau Amarelo) e durante o qual, no ver de muitos, ocorreria o fim do mundo. Meu pai ficou animadíssimo e providenciou negativos de fotos para que todos nós espiássemos o fenômeno, mas a meninada preferiu mesmo ver as estrelas aparecerem, os morcegos se assanharem e as galinhas subirem já de camisola para seus poleiros. D. Antônia, que veio de Muribeca nos visitar para o jejum da Semana Santa e nunca mais saiu lá de casa, se revelou muito satisfeita em haver presenciado o fim do mundo. Quando, terminado o eclipse, alguém tentou fazê-la ver que o mundo continuava, ela deu um risinho de superioridade anciã e respondeu "não, senhor, este agora é outro" — e outro permaneceu até a morte dela, às vezes penso que ela tinha razão.
Já grandinho e havendo tirado fino em inúmeros fins do mundo, morei nos Estados Unidos e, na universidade, fiz um amigo chamado Mike, que era muito chegado a um fim do mundo e chegou a participar de algumas vigílias pré-apocalípticas que não deram certo, mas ele nunca desanimou e é bem capaz de hoje morar em Manhattan e sair pela Times Square carregando um cartaz anunciando que o fim está próximo. Era na época da guerra fria, John Kennedy havia sido assassinado fazia poucos meses e Mike me demonstrou várias vezes, através de técnicas que iam do tarô à interpretação dos enigmas do nosso bom e velho Nostra, como as coisas estavam mesmo se encaminhando ao desenlace. Tomamos alguns porres terminais por causa disso, mas o mundo não acabou — só o que acabou, num soluto de chope, foram alguns milhões de neurônios além da cota normal.
E, em relação aos diversos entre vocês que estarão decepcionados porque o mundo não acabou (e vamos reconhecer que há motivos solertes para essa decepção, desde inadimplência à esperança de que a pobre sogrinha vá de vez para o inferno), também não existe motivo para desalento. A turma do Nostra, que é das mais persistentes, já preparou o plano B. Não terá acabado agora, mas acaba em 9 de setembro próximo, cabendo não esquecer, é claro, a tremebunda constatação de que 9 de 99 é o número da Besta do Apocalipse visto de cabeça para baixo, isso deve ter alguma relevância para a questão.
Bem, se não acabou, lembro, em mais um serviço público desta coluna — a qual, como dizem as empresas de planos de saúde e os supermercados, só pensa em você — que hoje é o Dia do Solteiro. Não faço a menor idéia de quem instituiu o Dia do Solteiro, mas diz aqui na agenda, e agendas não mentem, é o Dia do Solteiro. Por conseguinte, solteiros e solteiras do nosso imenso Brasil, aproveitem e façam tudo o que eu, por incompetente e vítima de uma época mais severa, nunca fiz. Agora limito-me a treinar novamente a distinção entre o lado esquerdo e o direito (a direita é o lado em que fica a impressora do computador, ontem uma visita me garantiu, é uma ótima referência), mirar o Redentor acolá no Corcovado e reconstatar com alívio que estou à direita d'Ele.
Pelas costas e na rabeira, mas à direita. Vejo alguns de vocês lá e, quanto ao resto, sorry, periferia.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 15/08/1999.