A protagonista de um livro meu afirma que desconfia quando Algo lhe diz qualquer coisa. Algo, lembra ela, mente muito. Mas ela também conclui que ignorar o que Algo diz pode constituir temeridade, pois, como eu também penso, uma boa paranoiazinha tem o seu lugar. No Brasil, especialmente, chega a ser imprescindível, porque, como sabemos, entre nós tudo acontece. Uma bela jogada pode embutir-se nas mais aparentemente inocentes manobras, como, por exemplo, a que com certeza estava por trás daquele kit de primeiros socorros, com o qual até hoje não me conformo. Armaram um dispositivo legal para obrigar os donos de carro à compra cativa do kit, faturaram uma nota, deixaram para lá e até hoje ninguém esclareceu quem ganhou essa bolada de forma tão espetacular, nem vai nunca esclarecer. E, para variar, chega de ficar pichando o governo o tempo todo, de vez em quando é bom ver nossa própria responsabilidade de carneirada dócil, que raramente se dá ao trabalho de prestar atenção ao que Algo nos sussurra, ou mesmo grita.
Ultimamente, sou obrigado a admitir que ele anda impossível, não aquieta a matraca. Ontem mesmo, enquanto eu carregava no computador a atualização de meu programa antivírus, ele me garantiu que os vírus são criados ou incentivados, ou ambas as coisas, pela indústria que vive de vender produtos contra eles. Mentira de Algo outra vez, como é que gente direita ia fazer uma barbaridade dessas? "Ah, não é não, não é?", casquina ele. "Você está esquecido de que a comunidade médica no mundo inteiro foi convencida de que margarina era muito menos nociva à saúde do que manteiga, no tempo em que havia uma enorme superprodução de milho nos Estados Unidos e agora, quando não é mais tão necessário desovar o milho, manteiga é que faz menos mal que margarina? E o café? E o ovo? E o chocolate? E o vinho tinto? E os bancos dos países aliados que financiavam os nazistas? E os impostos gordíssimos que o Estado arrecada da indústria de tabaco — na realidade de otários como você, que são os que realmente pagam o imposto —, enquanto santimonialmente desaconselha o seu consumo? E..." Continuou a noite toda, não respeitando nem os intervalos em que eu tinha de conter ímpetos blasfemos, ao ver a linha cair com mais de 90% dos arquivos já carregados, me obrigando a começar tudo de novo como um zumbi, madrugada adentro — a Telemar botando a culpa no provedor e o provedor botando a culpa na Telemar e a culpa sendo minha, porque não emigro logo para o Zimbábue, em vez de ficar aqui, brincando de alta tecnologia num contexto neolítico. E não respeitava nem minha necessidade de concentração, para decifrar a linguagem arcana das instruções que acompanham os tais programas, porque seu assunto agora é a Amazônia.
Surpresa, surpresa, mas o assunto favorito de Algo, na semana passada, foi a Amazônia. Com o risinho de mofa que lhe sublinha a insolência, ele me observou desagradavelmente que talvez eu não viva até lá, mas com certeza meus descendentes próximos serão obrigados a apresentar passaporte e visto para entrar na Amazônia hoje brasileira. Já tem lugar lá onde brasileiro não entra. "E quem diz não sou eu, não", prossegue Algo, "é o comandante militar da Amazônia. Não duvido que, se uma tropa dele por acaso entrar num desses lugares, seja considerada invasora. Estão de olho na riqueza da Amazônia, da biodiversidade aos minérios e à água (isto mesmo, a água utilizável está acabando, vai acabar havendo guerra por causa de água) e quem pensa que é alucinação persecutória vai tomar um susto, mais cedo ou mais tarde".
A Colômbia está com problemas, guerrilhas de esquerda e direita, governo bambo, narcotráfico cada vez mais poderoso. Claro, o problema básico é o nariz do consumidor e, no caso, o maior nariz é o americano.
Havendo demanda, haverá fornecedor, verdade inelutável desde que o homem é homem — senão, imagino eu, não haveria, por exemplo, proctologistas (nada contra, viva a proctologia nacional, santa categoria). Mas os americanos preferem a abordagem supply side, a que ataca, como metaforizaria o Joelmir Beting, no sacolé da produção, em vez da venta do consumo, mercadinho de quaquilhões e quaquilhões de dólares. Portanto, além de haver um país do continente em apuros, cabendo aos americanos, como sempre, estender seu socorro altruísta, há também a grave questão das drogas, que interessa a toda a Humanidade.
Deu na televisão, mas acho que não está dando mais, que os americanos estão preparando 900 soldados, imagino que de pelo menos coronel para baixo, para agir na Colômbia, colaborando com o governo. O xibungo do Algo fica jorrando delírios a meu lado. De repente, vão inventar uma Colômbia do Sul e uma Colômbia do Norte, dois países em guerra e de histórias e tradições diferentíssimas. Besteira não, foi assim que eles inventaram o Panamá, tirado da própria Colômbia com suporte em regionalismos folclóricos e até hoje colônia deles, que entram lá e fazem o que querem na hora em que bem entendem. "Um vietnãzinho amazônico", chalaceia Algo, "pode cair muito bem, ter 1.001 utilidades, as possibilidades são infindas".
Bem, não sei. Algo pode sempre estar mentindo. Agora mesmo insiste em que, no futuro próximo e com o apoio de ONGs suspeitas e inocentes úteis, as áreas indígenas deverão ser consideradas autônomas, inteiramente livres da ingerência brasileira, pois constituem etnias e culturas à parte, com direito a independência. Não tem sido assim nos Bálcãs? Não foi assim nas Malvinas, onde a população votou em plebiscito para continuar sendo britânica? Faz-se um plebiscito entre os ianomâmis, ganham os separatistas, os americanos reconhecem sua independência, as Nações Unidas vão na onda, os americanos entram com ajuda econômica, missões educacional-científicas e, pelo bem de todos, tomam conta de tudo e... Cala essa boca, Algo.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 29/08/1999.