O bom pedestre

(João Ubaldo Ribeiro)

O mundo dá muitas voltas, nada como um dia depois do outro, quem te viu, quem te vê — grandes constatações que, por cediças e muito repetidas, já não suscitam meditações filosóficas como a que me ocorreu faz poucas horas, ao atravessar uma ruazinha transversal à minha, a caminho da banca de jornais. Não sou um sábio distraído, desses sobre quem a gente lê em almanaques, que não lembra se almoçou e atravessa a rua resolvendo equações. Pelo contrário, sou um pedestre atilado, ligeiro e prudente, a ponto de, para citar apenas uma característica, só aceitar sinais de trânsito fresquinhos. Se já está verde na hora em que chego à esquina, espero o próximo, olho para os dois lados mesmo em ruas de mão única e atravesso rápido como quem furta.

Mas subestimei os brios do motorista que vinha do começo dessa rua estreita e sem sinal. Aparentemente calmo, ele dirigia devagar e dava tempo para que eu fizesse a travessia sem tentar bater algum recorde de corrida. Mas esta vida é prenhe de surpresas (hoje estou um verdadeiro Montaigne; daqui a pouco observarei, com grande originalidade, que o futebol não tem lógica e quem vê cara não vê coração) e, para infortúnio meu, ele me viu. Assim que me viu, baixou nele o verdugo que reside n'alma de nove entre cada dez motoristas brasileiros e mostrou que seu possante 1.6 era máquina suficiente para botar um pedestre petulante em seu lugar. Acelerou e, num segundo, passou por mim, quase aparando as unhas dos pés que eu mal acabara de pôr para fora do meio-fio e, entrando no cruzamento, reduziu a marcha a fim de me lançar um olhar censorial e desdenhoso, para depois, lição ministrada, continuar seu trajeto.

Se ele tivesse parado um tempinho, eu certamente aproveitaria para agradecer-lhe. É sempre bom que nos ajudem a manter os reflexos em dia e a não esquecer as regras básicas para a conduta do pedestre. Entre estas, sobressai a norma segundo a qual, se o pedestre não dá preferência ao carro ou por acaso atravessa com o sinal já fechado, o motorista tem pleno e inalienável direito de atropelá-lo. Se o pedestre vier a morrer em conseqüência de seu ato incivilizado, azar o dele, mereceu. Até mesmo porque, como se sabe, uma das melhores maneiras de assassinar alguém vigora no Brasil, que, nessa área, também se destaca no concerto universal das grandes nações. Basta encher a cara e atropelar o desafeto. A lei diz que dirigir embriagado é agravante, mas na prática é atenuante: o pobre do motorista, que, aliás, se mostra sempre abaladíssimo com o sucedido, bebeu um pouco, coitado, e o pedestre atravessou desatentamente — explicará o delegado. Paga-se uma fiançazinha de dez mirréis, vai-se para casa curar o porre (ou tomar outro, para celebrar a consecução exitosa do homicídio) e, uns 18 anos depois, com algum azar, pega-se uma condenação de seis meses em regime aberto. Não sei o nome desse educador desprendido, mas, onde quer que ele esteja, creia-me seu mais obrigado e grato admirador.

E pensar que já fui motorista. Verdade, não vos minto, já dirigi e me tinha na conta de levemente superior ao Piquet. Levei muito tempo para compreender minha inata condição de barbeiro e agora faz mais de 20 anos que não tenho, nem quero ter, habilitação. Ajudou-me, nessa penosa admissão, um episódio acontecido na Bahia, quando, arrostando filas, tumultos e esbregues de funcionários do Detran, falhei em sucessivas tentativas de conseguir fazer exame de vista, para renovar a carteira.

Um repórter de jornal, na mesma ocasião, tinha obtido, para um ceguinho, uma carteira de motorista profissional. (O ceguinho, por sinal, foi ótimo. Brandindo a carteira estalando de nova, declarou que havia aceito tomar parte na empreitada para chamar a atenção para o fato de que muitos deficientes físicos tinham condições de trabalhar.

"Eu mesmo, embora prefira outra colocação, posso até ser motorista de ônibus, porque carteira eu já tenho", disse ele, grande ceguinho.) Aí eu, que já estava me tornando uma espécie de celebridade local pela minha lendária inépcia ao volante, resolvi que não ia fazer exame de vista num Detran que dava carteira a cego e desisti de vez.

Não contava, porém, com a necessidade de reeducação, reciclagem e permanente atualização, para exercer a árdua condição de pedestre.

Acredito que hoje sou um pedestre razoável e conheço todas as regras de etiqueta aplicáveis à nossa sofrida categoria. Por exemplo, nunca esqueço de agradecer em profusão quando o motorista, abdicando generosamente de sua prerrogativa de me executar, me faz sinal para passar. Em qualquer lugar do mundo, até mesmo em Manhattan, cujo tráfego não é reputado pela polidez, considera-se natural o carro parar para o pedestre. Aqui não, aqui a gente tem de esperar a autorização e agradecer e, sem falsa modéstia, disponho de vasto elenco de acenos, sorrisos e mesuras para expressar meu reconhecimento.

Em outras áreas, contudo, devo admitir que ainda deixo a desejar. Por exemplo, por mais que tente, não há jeito de habituar-me à acelerada em ponto morto que motoristas, parados no sinal fechado, põem em prática, com o mero fito (o brasileiro é um povo muito brincalhão) de dar um susto no pedestre que passa pela faixa. Já sofri diversos minienfartes em tal situação e venho pensando em tomar um tranqüilizante sempre que precisar sair. É a grande solução para o pedestre. Notadamente agora, com o "Avança Brasil", que, se bem conheço nossa mãe gentil, terá como mais notável resultado legitimar o avanço de sinal já consagrado pela tradição. Depois falam mal do governo. Incentiva-se a indústria de remédios, agiliza-se o trânsito nas grandes cidades, faz-se controle populacional através da matança seletiva e humanitária de pedestres e esse pessoal ainda reclama. Assim fica difícil.