Pelo menos essa não me pega

(João Ubaldo Ribeiro)

Uma coisa e outra, o Brasil avançando, o presidente dizendo o que disse e depois dizendo que não disse, cálculos que demonstram que oito rodadas de roleta-russa têm menor probabilidade de matar o roletante do que parar num cruzamento da Tijuca — essa rotina cansativa, enfim — me têm impedido de dar notícias sobre uma área, que, a julgar pelo que me falam na rua, desperta grande interesse entre meus escassos quão caridosos leitores. Trata-se de meus problemas com a malha médica. Hoje posso comunicar com orgulho, aos que acompanham essa novela e ainda não lhe conhecem o desfecho (bem, o desfecho de verdade deve ser no São João Batista, da forma convencional, posto que, como já se falou muito, posso ser imortal, mas não sou imorrível), que, depois de empenhada e denodada luta, desci de minha marca máxima de oito simultâneos para apenas dois — um de cabeça e um geral.

Não foi moleza, posso garantir, e qualquer um que já caiu na malha médica há de testemunhar que é difícil. A maior parte dos que entram nunca consegue sair, é pior do que paulista quando vai atrás do trio elétrico, no carnaval de Salvador. Não tenho fórmulas a oferecer, a saída depende de sorte, coragem, fé em Deus e criatividade. Pouca coisa, como vêem, mas venci, ainda que muitas vezes fraquejando no caminho, e eis-me cá alforriado, pelo menos por enquanto. Só dois médicos. E o geral, de quem, por sinal gosto muito, mas tenho certeza de que é muito melhor companhia fora do consultório ou do hospital, eu não tenho procurado. De vez em quando ele me telefona, fica contente em saber que estou bem, mas quer me ver. Compreendo perfeitamente, mas acho que, seguindo a orientação de outro médico, vou mandar-lhe uma fotografia, toda vez em que ele disser que quer me ver. Assim ele me vê à vontade e eu não vou ter de ficar trançando as pernas em ante-salas de laboratório, depois de beber 18 copos d'água sem direito de ir ao banheiro, esperando a ultra-sonografia, ou tirar sangue em quantidades industriais no draculódromo mais próximo.

Aliás, os médicos meus amigos me têm cumprimentado vivamente pela minha proeza, empreitada que muitos deles avaliavam com ceticismo, eles se conhecem. Tanto assim que todos têm terror de médico, remédio, hospital e cirurgia. E o meu médico de cabeça, que, vocês podem não acreditar, também me diz que estou bem, foi bastante explícito. Em nossa consulta mais recente, ele ratificou sua convicção de que eu sou um maluco perfeitamente bom do juízo e regulado da idéia, felicitou-me pelas minhas ótimas condições e à saída, deu seu conselho final.

— Ah, sim — disse ele. — E procure evitar médicos, hem?

Eu sei, ele tem toda a razão, já senti isso na carne. Se deixarmos que eles abram o capô, comadres e compadres, claro que vão achar alguma coisa, quem procura acha — e quem tem o organismo perfeito? Além disso, a cada dia descobrem uma doença nova. Acho que eles têm uma central secreta aonde se dirigem, quando não conseguem achar uma doença no paciente, uma espécie de Disque-Doença.

— Tem um cara aqui completamente sadio — fala um, exasperado.

— Minha última esperança era uma tomografia caprichada, mas o desgraçado parece saído da fábrica hoje.

— Não esquente — respondem do outro lado.

— Em duas semanas, você estará recebendo um e-mail com um elenco de mais de 30 doenças novas e uma lista de 96 comidas e hábitos que dão câncer. Deixe com a gente, você pega ele.

Agora mesmo, numa dessas matérias de jornal que parece que só quem lê sou eu, anunciou-se alarmante doença nova. É a vigorexia, que já está em vias de ser catalogada na companhia de outros distúrbios, à semelhança da anorexia. Esse camarada do caso acima, por exemplo, pode muito bem ser uma vítima de vigorexia ainda no começo, antes que seus efeitos diabólicos a denunciem, quando talvez já seja tarde demais. A vigorexia, diz aqui, se caracteriza pela mania de malhar demais. O desafortunado vigoréxico nunca está satisfeito com seu corpo e se comporta como qualquer viciado em drogas, até deixando o trabalho ser afetado, somente para poder malhar mais. Se acha que não está 100%, não sai de casa para não ser visto em estado para ele deplorável, come obsessivamente o que considera indispensável para seu desenvolvimento muscular, se entope de complementos vitamínicos e até anabolizantes e hormônios, a ponto de muitos morrerem vendendo saúde e robustez ou se suicidarem, pois a taxa de suicídio entre vigoréxicos (nos Estados Unidos estimados em um milhão) é mais alta que no resto da população.

Prato feito para a malha médica, porque os estudiosos da vigorexia já enfatizam que o tratamento tem de ser multidisciplinar, aí uma bobaginha, vamos dizer psiquiatra, clínico geral, endocrinologista, neurologista, ortopedista, reumatologista, urologista (eles ficam com problemas de próstata, por causa dos hormônios e anabolizantes e muitos adquirem disfunções sexuais), vão botando médico nisso. Já prevejo o dia em que fundarão os Vigoréxicos Anônimos e, na porta das academias de ginástica, afixar-se-ão placas do Ministério da Saúde, avisando que malhar pode causar vigorexia e que o SUS não atende e o plano de saúde não cobre. Felizmente, dessa estou livre, porque venho de linhagem longeva e tão infensa a exercício físico que meu avô (falecido relutantemente com mais de 90), que tinha mania de jogar uma colher de açúcar na boca sempre que passava por um açucareiro, usava uma colher menor que a do açucareiro mesmo, por considerar esta pesada demais. Somomalaxia (podia ser "corpomolexia", mas achei mais chique usar componentes gregos), de que suspeito que muitos de nós padecemos, ainda não é doença. Mas não deixem que eles saibam.