A democracia em marcha

(João Ubaldo Ribeiro)

— Quer dizer que o senhor está realmente decidido a se candidatar à reeleição para prefeito?

— Evidentemente. Na minha opinião, a reeleição foi uma grande conquista democrática, uma grande conquista do povo brasileiro.

— Como assim?

— Ah, de várias formas. A principal é a continuidade administrativa. Antigamente, era um descalabro. O sujeito começava uma grande obra e, quando o outro assumia, largava tudo. Um desperdício horroroso, uma verdadeira indecência. Agora isso acabou. Agora eu tenho certeza de que vou ser reeleito e não só vou dar continuidade à minha obra, como vou manter a mesma equipe, que, modéstia à parte, é a melhor que esta cidade já teve.

— Como é que o senhor pode afirmar isso com tanta certeza?

— Porque eu conheço minha equipe, tenho entrosamento perfeito com ela toda. Esse pessoal fica falando em nepotismo, mas ninguém conhece a realidade brasileira. A teoria pode ser muito bonita, mas a realidade é outra, tem que ter os pés na realidade.

— Desculpe, não entendi direito.

— Por exemplo, minha secretária particular é minha sobrinha. Formada em contabilidade, fala inglês perfeitamente, uma pessoa altamente qualificada. Eu desafio qualquer um a provar, a não ser esses safados dos Nogueiras, essa gente ordinária que nunca valeu nada, eu desafio qualquer um a provar que existe uma pessoa mais qualificada do que Edilzenete, minha sobrinha, para exercer o cargo de minha secretária particular. E digo mais: se o senhor procurar na cidade toda e encontrar uma pessoa mais qualificada do que ela, eu sou homem de mudar, mas o senhor não encontra.

— Perdoe a insistência, mas como o senhor tem tanta certeza?

— Uma palavra basta: confiança. A pessoa pode até ter mais títulos do que ela, pode até ter mais experiência, mas onde fica a confiança? Eu tenho confiança cega nela e, num cargo desses, a confiança é o principal, o resto é secundário. O senhor acha que eu ia trabalhar com uma secretária que não fosse da minha inteira confiança?

— Mas, segundo me contaram, o senhor nomeou parentes para praticamente todos os órgão da prefeitura.

— Mentira! Eles mentem, eles fazem uma campanha permanente para tentar me desmoralizar, mas não conseguirão nunca! Quem é que é parente meu no governo? Um ou outro, entre centenas de funcionários. Está certo que meu cunhado é o secretário de Obras Públicas, mas cunhado não é parente, esta é uma verdade já estabelecida na política brasileira, não cabe mais nem discutir.

— Mas, por exemplo, sua mulher...

— Minha senhora, prefiro esse tratamento.

— Desculpe, sua senhora. Sua senhora não é a secretária de Educação?

— Novamente o problema da confiança! Da confiança e da qualificação! Minha senhora foi a melhor aluna do Instituto Normal na época dela, conhece mais português do que muito jornalista de meia-tigela por aí e, principalmente, é de minha confiança! A educação é um dos maiores problemas brasileiros e o senhor acha que eu ia botar uma pessoa que não fosse de minha total confiança para cuidar dessa área?

— Mas já me deram uma lista bem maior de parentes seus aqui. Dois filhos, oito sobrinhos, três noras, dois netos, um tio na Secretaria de Finanças...

— Mas parece que a gente fala e o que a gente fala bate na parede e volta! Eu já disse ao senhor que a palavra-chave é a confiança! Eu tenho de confiar nos meus subordinados. Quer dizer, um sujeito como eu, com a vida pública inatacável, procura se cercar de gente de sua confiança e isso é considerado um defeito? Isso é uma inversão de valores, parece coisa de comunista!

— Não, absolutamente, é só uma questão de procurar ver bem a situação, até mesmo porque a oposição vem acusando o senhor de usar a máquina administrativa para garantir a reeleição.

— Outra infâmia! Agora, o que eu, que amo minha terra acima de tudo, é que não vou prestigiar gente como os Nogueiras, que não querem o bem da minha terra, querem só o bem deles. Eu vou asfaltar rua que interesse a eles? Claro que não! Seria ajudar os que estão contra os interesses do município. Os interesses do município estão acima de tudo. Por exemplo, eu acabo de criar uma porção de diversos cargos na administração dos distritos e não nomeei ninguém ligado aos Nogueiras, não nomeei mesmo, digo isso de peito erguido, é mérito meu! Porque eu sei que é tudo ladrão e bandido, comigo eles nunca vão ter vez. Eu distribuí os cargos de acordo com os interesses do município, não admiti o ingresso dessa canalha no serviço público, isso é usar a máquina? É muita má vontade, é querer muito jogar lama em quem tem o passado limpo. Eu jamais me aproveitei de minha posição para obter vantagem nenhuma, minha vida é um livro aberto! Eu sou um homem de princípios, um homem fiel aos ideais do meu partido!

— O PSDB, como na eleição passada?

— Essa questão de nome de partido não vem ao caso, o que interessa são os princípios. Eu agora me filiei ao Pefelê, mas isso não quer dizer nada, faz parte do jogo político.

— Mas o senhor não disse que era fiel aos ideais do partido?

— Do Pefelê! Agora que estou no Pefelê, sou fiel aos ideais do Pefelê.

— Não compreendi bem.

— É, eu sei, já deu pra ver que o senhor não compreende nada de política. É por essas e outras que eu, apesar de minha formação, de vez em quando acho que o Brasil ainda não está pronto para a democracia. É triste, é de desanimar qualquer um.