Vem, que é mole

(João Ubaldo Ribeiro)

Está certo que pimenta no dos outros é refresco e que o trabalho alheio é sempre moleza. Feito este desconto, gostaria de abordar os cruciantes problemas enfrentados pelo escritor, todos, quase sem exceção, ignorados pelo grande público. O grande público, para começar, acha que escritor, basicamente, escreve. Não é verdade. Excluídos alguns raros casos especiais, o que o escritor menos faz é escrever, até porque escrever não é trabalho e, portanto, qualquer um se acha no direito de interromper essa atividade a qualquer momento e por todo o tempo que seja necessário. Os deveres decorrentes dessa curiosa circunstância são tão numerosos que seria impossível arrolá-los, mas falo em dois ou três, só para que vocês fiquem sabendo de fatos que talvez ainda não conheçam.

A coisa que o escritor mais faz é dar entrevistas. O escritor, principalmente se romancista, é tido como autoridade em tudo e é o primeiro nome que ocorre ao pauteiro, assim que aparece um gancho para uma matéria. Dar opinião é irrecusável, notadamente quando algum de nossos romances abordou, ou mesmo tocou muitíssimo de leve, no assunto que preocupa o pauteiro do jornal. Antes, eu já era brasileirólogo, cangaceirólogo, negrólogo, germanólogo, oceanógrafo, pescadorólogo, obstetra (e mulher parida também; já fui mulher parida uma vez, porque acharam que eu descrevi bem uma mulher parindo) e mais três ou quatro centenas de especialidades que fui adquirindo, à medida que fazia romances. Agora, por causa de meu livro mais recente, sou não somente sexólogo (outro dia, uma moça de jornal fico chateadíssima comigo porque eu não descrevi a ela o comportamento dos brasileiros típicos na cama) como libertino devassíssimo, obrigado a andar na companhia permanente de um psiquiatra que me aplique um sossega-leão quando (ou seja, sempre) eu estiver a pique de tirar a roupa na churrascaria e propor sexo grupal numa mesa composta dos times de futebol masculino e feminino do Flamengo. (A pequena vantagem que levo como subproduto é a certeza, por muitas manifestada até pessoalmente, de que sou gostosíssimo; e sei, de fonte limpa, de várias que já — como direi? — desfrutaram de meu corpo dourado e acharam a experiência fantástica, embora, lamentavelmente, eu nunca tenha sido apresentado a nenhuma delas, deve ter sido durante um dos meus vários episódios de privação de sentidos depravada.) O escritor tem também, como importantíssima atividade, participar de encontros com o público e mesas-redondas. Da mesma forma que em relação a entrevistas, o escritor participa de mesas-redondas a respeito de absolutamente qualquer tema, sobre o qual se espera que ele se manifeste com brilhantismo, conhecimento de causa e de acordo com as preferências majoritárias da platéia. Tenho toureado, sem envergonhar muito vocês, umas paradas boas por esta vida afora, proferindo besteiras aparatosas sobre candomblé, navegação eólica, o Oriente Médio, a situação dos índios na Amazônia, o relacionamento entre médicos e pacientes, os efeitos especiais no cinema de Hollywood, a dieta dos maoris e muitíssimos outros assuntos dos quais entendo tanto quanto vocês de plurais em chinês. (Aliás, se pintar uma mesa por aí sobre plurais chineses, já estou pronto para o convite, a experiência é uma grande mestra.) O escritor deve também treinar bastante para pedir desculpas por ofender. Escritor ofende com muita facilidade, é um suspense perpétuo, nunca se sabe quando a gente ofendeu ou está ofendendo. Com algumas coisas, como o fato de eu usar sandálias, já me acostumei, tenho até algumas desculpas decoradas. Mas outras são mais difíceis, tais como as relacionadas com a decepção com o nosso jeito. Antigamente, era também com a cara, mas a cara hoje sai muito estampada por aí, de forma que sobra o jeito. Às vezes, a gente é até, costumeiramente, do jeito que o freguês pensa que a gente é, mas, naquele dia ou naquela hora, algum problema nos impede de estar do jeito esperado. Podemos estar com dor de dentes ou preocupados com algum problema em casa. Aí o jeito decepciona e ofende muito. Às vezes, o choque é tão grande que o desforço físico chega a parecer inevitável e, felizmente, Deus me fez baiano, mas não me fez relaxado o suficiente para não escafeder-me com rapidez, quando o camarada se decepciona gravemente com meu jeito.

O escritor também precisa ser grande leitor de originais. Aliás, a verdadeira profissão de escritor é ler originais. Há um certo problema de falta de tempo aí, porque, por exemplo, se eu fosse ler os originais que me passam, não faria outra coisa na vida e ainda haveria originais sobrando. É outro motivo de grave ofensa, porque, quando aparecem os originais, o comportamento que o escritor deve ter é abandonar imediatamente tudo o que estiver fazendo, inclusive a leitura de outros originais, devorar os originais de um fôlego só e entre exclamações de "olé!", escrever um prefácio consagrador, publicar o livro, o livro vender 10 milhões de exemplares e o autor passar imediatamente a residir num iate de 80 pés, papando a Sharon Stone e a Naomi Campbell, que é, como todo mundo sabe, o que nós, escritores, vivemos fazendo, nos intervalos das entrevistas, das mesas-redondas e dos originais.

Enfim, é profissão comparável com a de um piloto de corrida, há sempre um desafio potencialmente fatal. Pensando bem, talvez seja a melhor profissão que existe, porque, além de não se trabalhar (a não ser de graça, mas aí não é trabalho, são só duas laudazinhas, que são duas laudazinhas para nós?), se aprende muito. Nessa quarta-feira mesmo, estarei sendo filmado enquanto discorro sobre a cegueira. Que entendo eu de cegueira? Nada. Foi o que disse ao cineasta, mas acho que ele se ofendeu e então eu vou dar a entrevista. Ainda não estou pretendendo pingar ácido sulfúrico nos olhos para cumprir meu dever profissional, mas, em todo caso, se não sair crônica aqui na semana que vem, é porque eu ainda não terei tido tempo de aprender braile.