Um computador dá mais trabalho e preocupação do que seis famílias, digo isto sem medo de exagerar. Só quem discorda são certas categorias, como os fanáticos, os diletantes, que na verdade não precisam muito dele e portanto o utilizam basicamente para fazer gracinhas e encher o saco alheio com e-mails sentenciosos, os carentes emocionais, os jovens que não têm de fato mais nada em que se ocupar e acabam ganhando dinheiro com a incompetência e falta de escrúpulos que grassa na indústria informática e mais poucos outros. Concordam os que dependem desta estrovenga para viver e, ainda por cima, não são muito inteligentes e padecem de neurose obsessivo-compulsiva em grau alarmante, como eu.
Tanto assim é que mesmo muitos micreiros metidos a sebo (quase todos eles ficam metidos a sebo, é um espanto, deve fazer parte de alguma síndrome ainda não estudada; quando não falam em computador, são uns encantos e, quando falam, evocam ganas de abatê-los a tiros) das minhas relações têm um guru, uma espécie de personal trainer. É o único aparelho de uso pretensamente comum que requer a assistência de um personal trainer, porque se trata de uma máquina atrasada e primitiva, atrapalhada por ganância e despreparo, da qual ninguém realmente entende e causa milhares de transtornos a cada hora, alguns deles catastróficos para as vidas de pessoas e organizações. Há uma famosa comparação de um executivo da General Motors, entre um carro e um computador, em que fica patente que se os automóveis funcionassem como os computadores, todo mundo morreria ou se aleijaria no trânsito em coisa de dois ou três dias.
— O volante cometeu uma ação ilegal e será desativado agora — informaria o carro, enquanto você inutilmente tentaria dobrar à direita, para acabar caindo no canal do Mangue.
Recentemente, levado pelo despeito e inveja que nutro pelo conceituado ficcionista e informata Rubem Fonseca e espicaçado pelos seus comentários aleivosos quanto a meu equipamento, resolvi juntar tudo o que ganhei com uns dois livros (eu sei que tem gente que me acha rico milionário porque meus livros vendem bem, mas eu não conto quanto ganho porque tenho vergonha e me arrependo de não haver seguido os conselhos de meu pai, que morreu desgostoso porque eu nunca quis ser tabelião e agora é tarde) e comprar assim um Boeing dos computadores.
Comprei. Trata-se de um poderosíssimo Compaq, ao qual, nos intervalos de dar entrevistas sobre a inata sensualidade do baiano e falar inanidades sortidas, como se espera de um escritor, dedico hoje minha vida.
Tem lá suas emoções. Agora mesmo, estou escrevendo como um corredor de Fórmula Um: não sei se chego ao fim, em perigos e guerras esforçado, porque o meu Compaq não me corresponde à dedicação que lhe devoto.
Muito pelo contrário, trata-se de um tirano temperamental e desequilibrado, cuja natureza já por si insolente, malévola e infensa a interferências, é reforçada pelos softwares enganosos, burros, complicados e irresponsáveis que neste mundo abundam. A tudo isso some-se a nossa esquizofrenia habitual, na convivência entre o neolítico e a alta tecnologia. As linhas telefônicas não funcionam, os provedores pifam, a Embratel pifa, a Telemar pifa, todo mundo bota a culpa nos outros e quem depende dessa rede infernal deve ser responsável pelo consumo de ao menos metade das bolinhas vendidas no País.
É, não sei se acabo. Ele pode de repente abrir uma janelinha sem que nem para que e me comunicar que houve um erro de alcunha cabalística, em setor igualmente hieroglífico, e que, portanto, não poderá continuar e, se eu insistir, travará e apagará tudo. Deu para esse tipo de coisa, recentemente. Um belo dia, sem a mínima provocação, eu o ligo para trabalhar e, quando se acendeu aquela primeira bandeira do Windows (que é usada, como me explicaram outro dia, para esconder os dados que estão por trás, inclusive a presença, por eles negada, do sistema DOS — pura safadagem, como tanta coisa mais nessa área), ele abriu uma tela me informando que ou eu reinstalava o Windows ou ele poderia se tornar instável, o risco era meu.
Durante vários dias, trabalhei em suspense, desafiando a tal instabilidade, que, graças a Deus, nunca chegou a manifestar-se. Mas a situação não podia permanecer assim, de maneira que fui obrigado a convocar minha personal trainer, que, modéstia à parte, entende de computador mais do que padre de missa. Coisa pouca, pensou ela.
Reinstalou-se o Windows, lá veio a mensagem de instabilidade outra vez.
Umas 12 horas de trabalho, acho eu, até ela conseguir resolver o problema. Muito bem, no dia, seguinte, ele decide não reconhecer mais minha senha e começa a trocar programas aleatoriamente. O programa de correio endoidou, o navegador também faz avisos sinistros, a Microsoft adverte que eu preciso baixar atualizações críticas urgentes e, quando as baixo, o computador (ou algum diabinho destacado para isso) não as instala e mais dezenas de outros desvarios, é um manicômio.
Entre conselhos aparvalhados da assistência técnica do provedor e imprecações da minha personal trainer, fomos assistindo à interação maligna da máquina e dos sistemas que abriga e agora estou neste ponto.
É Deus castigando, quem manda eu ter querido me vingar do Zé Rubem. Mas ainda posso me gabar de ter um possante Compaq. Não (me) vale nada e muito menos se deixa manipular, mas é um Compaq. Na sexta-feira que já haverá passado quando esta crônica estiver saindo, deverá ter ocorrido aqui a reunião de uma junta médica do mais alto nível (tão alto que eu não digo os nomes, para não parecer mentiroso), a fim de tentar as medidas heróicas que se impõem. Aguardem. Se ele, depois disso, continuar me infernando o juízo, vocês serão convidados a um evento performático, aqui no Leblon. Não é todo dia que se pode assistir ao lançamento de um legítimo Compaq da janela de um quarto andar.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 31/10/1999.