Amor, sublime amor

(João Ubaldo Ribeiro)

No verdor das minhas 58 primaveras, costumo ouvir comentários magoados de coroas do meu tope para cima, sempre que comento estar ficando velho. Outro dia mesmo, à entrada da renomada Farmácia Edith, baluarte do Leblon onde adquiro minhas maracuginas, magnésias, melhorais, maravilhas curativas e outros revolucionários remédios de meu tempo, fui abordado por um coevo com a expressão triunfal de quem acabara de comprar oito caixas de Viagra, que me recriminou, educada, mas veementemente, por falar em nossas pelancas de pescoço, pés-de-galinhas e outros sinais cruéis de que não somos mais aqueles e que nos consideramos pessoalmente atingidos pelos comerciais de Sukita. Na sua opinião, que ele teve a delicadeza de não manifestar explicitamente, velho é alguma ancestral próxima minha.

Talvez ele tenha razão, talvez a velhice esteja mesmo somente na cabeça de quem se acha ou sente velho, mas para mim tanto faz. Quer queiramos ou não, estamos ficando velhos, sim, porque o processo se acentua, nesta era em que, no momento em que tiramos um aparelho novo da caixa, ele já está obsoleto. E nós, que saímos da caixa faz algumas décadas, já estamos para lá de obsoletos. Bem que a gente faz força para não fossilizar-se, mas é difícil. Quando comecei a trabalhar em jornal, no fim da década de 50, praticamente o único instrumento que o sujeito tinha que saber usar era uma máquina de escrever. No máximo, precisava — e reclamava — usar uma Remington nova, em lugar da Underwood antiga. Conheço inúmeros que passaram toda a vida profissional assim. Hoje, não; hoje, o sujeito, para ficar com a cabeça fora d'água, é forçado a aprender pelo menos um programa de computador novo por ano e a desenvolver novos hábitos e práticas de trabalho, quando ainda nem absorveu os anteriores. E isso, é claro, não ocorre somente com jornalistas.

Não somos velhos, num mundo em que, entre milhares de outras coisas, muitas delas imprevisíveis mesmo por um Jules Verne contemporâneo, o homem, que até hoje tem ódio do outro porque o outro é preto ou branco, ou come carne de porco ou não, se torna cada vez mais senhor de seu destino? Ao que parece, com a exceção de alguns malucos como eu, pouca gente se preocupa, mas a preocupação é mais que justificável, como já escrevi aqui antes, sem que ninguém, aparentemente, haja prestado atenção. Claro que existem vantagens nesses duvidosos progressos e não se pode fazer nada para evitá-los, mas nenhum de vocês se assombra, para citar somente um caso, com a possibilidade, já aberta e cada vez mais se expandindo, de o homem controlar sua reprodução nos mínimos detalhes?

Sim, doenças geneticamente transmitidas e outros problemas serão vencidos, mas a que preço? Está próximo, já dobrou a esquina mesmo, o dia em que haverá arquitetos de gente. Não se terão mais filhos como ainda os produzimos, mas de forma planejada em todos os pormenores, desde o sexo à cor do cabelo, aptidão intelectual, temperamento ou vocação. Um avanço relativamente bobo, como a possibilidade de saber qual o sexo de um feto através de uma trivial ultrassonografia, vem produzindo conseqüências em países como a Índia, onde, para grande número de casais, ter uma filha, em vez de um filho, significa desvantagens. O número de abortos de meninas por lá vem aumentando exponencialmente, como os jornais noticiam. E esse tipo de traço cultural e social é muito forte em diversos outros povos. Tenho pesadelos em que um país só de homens acabe armando exércitos de donzelões, para pegar as mulheres dos vizinhos. É só soltar um bocadinho a imaginação, para antecipar as conseqüências desse "progresso", ainda mais quando o sexo for amplamente determinável, como já quase é para todo mundo e é concretamente para quem dispõe de recursos, e não mais apenas constatável.

Que critérios serão usados para as escolhas dos descendentes dos adultos em idade de procriação? Os mais loucos possíveis, é claro, porque de racional o homem não tem quase nada. Os critérios pessoais ("quero que a Priscilla Alessandra nasça loura, de olhos azuis e com boa voz para cantar", "quero que o Vinícius Phelippe nasça moreno de olhos verdes, com talento para negócios a fim de me substituir na loja e Flamengo até morrer", "quero que a Estefânia Carolina nasça dócil e com vocação para serviços do lar, para me ajudar a lavar os pratos", "quero que o Marcos Eduardo nasça homossexual, para fazer companhia a seu pai adotivo" — sei lá, tudo é possível na cabeça humana) são por si sós assustadores, mas considero ainda mais temíveis os critérios oficiais.

Não se diga que o Estado não pode interferir na reprodução humana, porque pode e, de uma forma ou de outra (antigamente, por exemplo, proibindo o casamento ou qualquer contato sexual entre pessoas de categorias diferentes e estigmatizando os frutos desse contato de maneira brutal) sempre interferiu, como na China atual, onde cada casal só pode ter um filho. Vêm-me arrepios ao pensar em economistas e sociólogos, cujo desempenho já nos vitima impiedosamente, fazendo projeções sobre as famílias do futuro. Haverá cotas de sexo e aptidão, segundo as projeções oficiais? Com certeza, e Deus nos proteja do que perpetrarão.

Finalmente, para quem isto ainda não é motivo de preocupação, sustento, na minha recém-adquirida condição de sexólogo, que até mesmo o contato sexual direto começa a ficar obsoleto. Qualquer um com acesso à Internet pode, por exemplo, dar uma olhada no site (comercial, não pornográfico) http:\\www.fufme.com. Lá está, oferecida por módicos 500 dólares, uma maquineta que proporciona a seus usuários transar com outros pelo computador, não através de palavras somente, como até pouco tempo atrás, mas fisicamente. Embora sem jamais um tocar no outro — quem precisa dessa coisa imunda e perigosa, hoje em dia? Em verdade lhes digo, estou cada vez mais inclinado a ingressar no rol dos fim-do-mundistas. Vai acabar mesmo, e é pra já.