No verdor das minhas 58 primaveras, costumo ouvir comentários magoados de coroas do meu tope para cima, sempre que comento estar ficando velho. Outro dia mesmo, à entrada da renomada Farmácia Edith, baluarte do Leblon onde adquiro minhas maracuginas, magnésias, melhorais, maravilhas curativas e outros revolucionários remédios de meu tempo, fui abordado por um coevo com a expressão triunfal de quem acabara de comprar oito caixas de Viagra, que me recriminou, educada, mas veementemente, por falar em nossas pelancas de pescoço, pés-de-galinhas e outros sinais cruéis de que não somos mais aqueles e que nos consideramos pessoalmente atingidos pelos comerciais de Sukita. Na sua opinião, que ele teve a delicadeza de não manifestar explicitamente, velho é alguma ancestral próxima minha.
Talvez ele tenha razão, talvez a velhice esteja mesmo somente na cabeça de quem se acha ou sente velho, mas para mim tanto faz. Quer queiramos ou não, estamos ficando velhos, sim, porque o processo se acentua, nesta era em que, no momento em que tiramos um aparelho novo da caixa, ele já está obsoleto. E nós, que saímos da caixa faz algumas décadas, já estamos para lá de obsoletos. Bem que a gente faz força para não fossilizar-se, mas é difícil. Quando comecei a trabalhar em jornal, no fim da década de 50, praticamente o único instrumento que o sujeito tinha que saber usar era uma máquina de escrever. No máximo, precisava — e reclamava — usar uma Remington nova, em lugar da Underwood antiga. Conheço inúmeros que passaram toda a vida profissional assim. Hoje, não; hoje, o sujeito, para ficar com a cabeça fora d'água, é forçado a aprender pelo menos um programa de computador novo por ano e a desenvolver novos hábitos e práticas de trabalho, quando ainda nem absorveu os anteriores. E isso, é claro, não ocorre somente com jornalistas.
Não somos velhos, num mundo em que, entre milhares de outras coisas, muitas delas imprevisíveis mesmo por um Jules Verne contemporâneo, o homem, que até hoje tem ódio do outro porque o outro é preto ou branco, ou come carne de porco ou não, se torna cada vez mais senhor de seu destino? Ao que parece, com a exceção de alguns malucos como eu, pouca gente se preocupa, mas a preocupação é mais que justificável, como já escrevi aqui antes, sem que ninguém, aparentemente, haja prestado atenção. Claro que existem vantagens nesses duvidosos progressos e não se pode fazer nada para evitá-los, mas nenhum de vocês se assombra, para citar somente um caso, com a possibilidade, já aberta e cada vez mais se expandindo, de o homem controlar sua reprodução nos mínimos detalhes?
Sim, doenças geneticamente transmitidas e outros problemas serão vencidos, mas a que preço? Está próximo, já dobrou a esquina mesmo, o dia em que haverá arquitetos de gente. Não se terão mais filhos como ainda os produzimos, mas de forma planejada em todos os pormenores, desde o sexo à cor do cabelo, aptidão intelectual, temperamento ou vocação. Um avanço relativamente bobo, como a possibilidade de saber qual o sexo de um feto através de uma trivial ultrassonografia, vem produzindo conseqüências em países como a Índia, onde, para grande número de casais, ter uma filha, em vez de um filho, significa desvantagens. O número de abortos de meninas por lá vem aumentando exponencialmente, como os jornais noticiam. E esse tipo de traço cultural e social é muito forte em diversos outros povos. Tenho pesadelos em que um país só de homens acabe armando exércitos de donzelões, para pegar as mulheres dos vizinhos. É só soltar um bocadinho a imaginação, para antecipar as conseqüências desse "progresso", ainda mais quando o sexo for amplamente determinável, como já quase é para todo mundo e é concretamente para quem dispõe de recursos, e não mais apenas constatável.
Que critérios serão usados para as escolhas dos descendentes dos adultos em idade de procriação? Os mais loucos possíveis, é claro, porque de racional o homem não tem quase nada. Os critérios pessoais ("quero que a Priscilla Alessandra nasça loura, de olhos azuis e com boa voz para cantar", "quero que o Vinícius Phelippe nasça moreno de olhos verdes, com talento para negócios a fim de me substituir na loja e Flamengo até morrer", "quero que a Estefânia Carolina nasça dócil e com vocação para serviços do lar, para me ajudar a lavar os pratos", "quero que o Marcos Eduardo nasça homossexual, para fazer companhia a seu pai adotivo" — sei lá, tudo é possível na cabeça humana) são por si sós assustadores, mas considero ainda mais temíveis os critérios oficiais.
Não se diga que o Estado não pode interferir na reprodução humana, porque pode e, de uma forma ou de outra (antigamente, por exemplo, proibindo o casamento ou qualquer contato sexual entre pessoas de categorias diferentes e estigmatizando os frutos desse contato de maneira brutal) sempre interferiu, como na China atual, onde cada casal só pode ter um filho. Vêm-me arrepios ao pensar em economistas e sociólogos, cujo desempenho já nos vitima impiedosamente, fazendo projeções sobre as famílias do futuro. Haverá cotas de sexo e aptidão, segundo as projeções oficiais? Com certeza, e Deus nos proteja do que perpetrarão.
Finalmente, para quem isto ainda não é motivo de preocupação, sustento, na minha recém-adquirida condição de sexólogo, que até mesmo o contato sexual direto começa a ficar obsoleto. Qualquer um com acesso à Internet pode, por exemplo, dar uma olhada no site (comercial, não pornográfico) http:\\www.fufme.com. Lá está, oferecida por módicos 500 dólares, uma maquineta que proporciona a seus usuários transar com outros pelo computador, não através de palavras somente, como até pouco tempo atrás, mas fisicamente. Embora sem jamais um tocar no outro — quem precisa dessa coisa imunda e perigosa, hoje em dia? Em verdade lhes digo, estou cada vez mais inclinado a ingressar no rol dos fim-do-mundistas. Vai acabar mesmo, e é pra já.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 21/11/1999.