Pronto, perdi a vergonha, vejo-me obrigado, por imposições da realidade, a tratar mais uma vez do assunto que me persegue há muitos meses, qual seja a minha condição, já exposta brevemente aqui, de rei do sexo. Se arrependimento matasse, talvez alguns de vocês já tivessem comparecido ao São João Batista, para prestigiar meu certamente pouco concorrido sepultamento. Quando escolhi a luxúria como assunto para um livro, nunca pude imaginar as conseqüências. Quis defender a imagem da Bahia, rejeitando a preguiça, e deu no que deu. Devia ter-me resignado à convicção universal de que baiano é preguiçoso mesmo e atendido às expectativas de todos, explicando como passo a vida numa rede e necessito, a cada dia, de duas a três horas de exortação para me levantar da cama. Mas fui me meter a contrariar a voz do povo e o resultado é traumatizante.
O último golpe foi a notícia de que as cadeias de hipermercados Pão de Açúcar e Continente, em Portugal, se recusaram a distribuir e vender o livro. Claro, não foi Portugal, foram apenas duas grandes empresas (a primeira das quais a gente pensa que é brasileira, mas em Portugal, já me disseram, não é mais). De qualquer forma, contudo, aconteceu em Portugal e sofro pesadelos em que, voltando à minha amada Lisboa, onde já morei e tenho amigos queridíssimos, seja recebido por uma passeata de freiras e beatas de bigode, com cartazes exigindo minha excomunhão e imediato banimento. Se vocês pensam que isso é medo de pouca coisa, é que não presenciaram o esbregue que tomei de uma robusta senhora, no metrô de Lisboa, porque, por distração, não me levantei para ceder meu lugar a alguém que tinha direito (moral ou jurídico, não sei bem) a ele. O discurso foi tão vigoroso e a senhora fazia gestos tão anunciadores de iminente desforço físico que não só me levantei imediatamente, como desci na estação próxima e, trêmulo e abalado, esperei a passagem do comboio seguinte, onde viajei em pé, por via das dúvidas.
Sim, meio chato, esse negócio de ser censurado em Portugal, logo eu, que fiz tanta força para ser preso por causa de meus escritos durante o regime militar e o máximo que consegui foram uns dois inqueritozinhos que não deram em nada, além de um par de convocações para explicar-me à Polícia Federal. Escrevi até um livro para ver se finalmente me prendiam, mas ninguém deu a menor pelota para ele (nem dá até hoje, pensando bem). Nada, contudo, é tão chato quanto outras coisas que me vêm ocorrendo, tais como descrições arrebatadoras de meu atletismo sexual (como já disse, em companhia de senhoras e senhoritas às quais nunca fui apresentado — e até passei a supor que o atletismo sexual dispensa essas formalidades), consultas sobre sexo e outros eventos.
Contribui sobremaneira para tal situação o fato de que muita gente manda circulares pela Internet, contendo os endereços dos destinatários, com o resultado de que todos os da lista têm conhecimento dos endereços alheios. Uma revista de circulação nacional, por exemplo, me fez o favor de distribuir uma dessas circulares entre os seus leitores e amigos, com o resultado de que meu endereço, a esta altura, já deve ser mais conhecido do que os traseiros das moças que rebolam na tevê. Até originais de livros me mandam por e-mail e, para não ficar duas horas diante do computador, esperando que a correspondência toda baixe, já fui obrigado a instalar um programa que me permite ver antecipadamente, ainda no servidor, o que me espera na caixa postal e me livrar daquilo que não vou ter tempo nem de ler, quanto mais de responder.
Mas alguma coisa termina passando e, nesta última semana, recebi dois e-mails interessantes, ambos de senhoras casadas, uma do Rio e outra do interior de São Paulo, que afirmavam estarem escrevendo na companhia de seus maridos. Tratavam-se — como direi? — de propostas razoavelmente explícitas para que vivêssemos juntos uma experiência de sexo a três. "Sou casada", dizia uma das senhoras, "tenho 42 anos e estou em plena forma, a ponto de dizerem que pareço pelo menos dez anos mais nova. Adorei seu livro e senti que, por trás dele, há uma pessoa aberta, sensual e vigorosa, com o que meu marido concorda plenamente. Talvez você se surpreenda com isso, mas a verdade é que concordamos em lhe mandar este e-mail e achamos que teríamos muito a ganhar, se você se dispusesse a nos conhecer pessoalmente. Temos certeza de que não se arrependeria." Seguiam-se mais algumas observações que o pudor me impede de transcrever, endereço completo e telefone. Lembrando padre Brito a vociferar sobre as penas do inferno, durante minha infância em Aracaju, suei frio um pouco e deletei a mensagem, como venho deletando as outras. Não estou à altura desses desafios.
O telefone, se bem que eu costume fugir dele para poder trabalhar, também me tem rendido momentos singulares. Vozes femininas, geralmente jovens, às vezes manifestam opiniões inauditas sobre minha humilde pessoa e não menos modesta catadura, tais como "você é gostoso, sabia?" e outras vezes bastante mais que isso. Outro dia, o telefone tocou por volta das sete da manhã. Achando que era alguma notícia urgente, atendi, só ouvi risadinhas do outro lado e desliguei. Mas tocou novamente, até que, na terceira ou quarta chamada, a voz de uma moça chegou ao primeiro plano e abriu-se uma polifônica trilha sonora de gemidos, ais, suspiros, gritinhos, uivos e exclamações pouco recatadas, entre pedidos para que eu dissesse a ela o que estava fazendo, durante nossa "transa".
— Desligando — respondi, suando frio outra vez, e tirei o fone do gancho, depois que ela continuou a insistir nas chamadas.
Será que vou ter de assumir, meu Deus do céu? Não, não, eu devia ter escrito esse livro há uns 30 anos. Agora é tarde e não se surpreendam se vierem a saber que, depois de intensa meditação, um escritor baiano de bigode e óculos acabou de tornar-se irmão leigo num mosteiro trapista. Em Portugal, naturalmente.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 05/12/1999.