Acho que não me encontro sozinho, em matéria de já estar de saco cheio do milênio. (Cartas sobre como o milênio começa realmente em 2001 para o editor, pelo amor de Deus.) Creio firmemente que, além dos que, como judeus, muçulmanos e chineses, não estão vendo milênio nenhum aparecer, há um vasto contingente que é obrigado a aceitá-lo, mas não agüenta mais listas e previsões, ainda mais que é patente a cretinice da maior parte delas. Outro dia mesmo, acho que escutei vagamente, ao passar pela tevê para pegar um guaraná (viciei, é minha sina; está na hora de criar os Guarananófilos Anônimos), uma lista, feita pelos ingleses, dos maiores músicos do milênio. Deu em primeiro lugar, se não me engano, John Lennon. Fiquei meio assim, pensando um pouco em Bach, Mozart e Beethoven, para não falar em Pixinguinha. É, mas foi John Lennon, quanto mais se vive mais se aprende.
Como o milênio se mistura com o final do século, há também as numerosíssimas listas de melhores, maiores e mais importantes do século. Até eu já entrei em algumas dessas listas, para vocês verem como elas são importantes. É já tradicional que, com a interrupção tradicional do funcionamento do País entre mais ou menos os meses de dezembro e março, a imprensa (a mídia, desculpem; é que eu tenho antipatia por esta palavra e fico remando contra a maré sem querer) se veja sem ter o que noticiar e passe a cuidar de assuntos como a influência do uso do fio dental na taxa de natalidade do Nordeste ou cardápios para piqueniques no Ibirapuera. Aí as listas quebram um grande galho para as redações e não passa um dia sem que gente como eu seja consultada sobre alguma lista. Como sou péssimo listeiro, geralmente peço uma sugestão ao perguntador e a aceito prontamente. Já devo ter votado em Gandhi, Churchill, Getúlio Vargas, Vera Fischer, Juscelino, as Frenéticas, John Kennedy, Tiririca, Victor Mature e dúzias de outros, a depender de quem está fazendo a lista. Sugeriu, eu voto, quem manda me perguntarem.
As previsões talvez sejam ainda mais chatas, até porque estamos cansados de saber o que vai acontecer, pois, naturalmente, já está acontecendo. Nós, brasileiros, vamos entrar em 2000 do mesmo jeito em que nos encontramos. Minto: do mesmo jeito em que nos encontramos, não. Do mesmo jeito para o qual nos encaminhamos celeremente, seguindo à nossa moda o resto do mundo, onde, como se sabe, os governos estão acabando e a noção de Estado como detentor do monopólio da violência (outro dia, o homem usou esta expressão corretamente, mas foi mal compreendido, é o carma dele) e da capacidade de administrar, legislar e aplicar a lei. Quem administra, legisla, julga, sentencia e executa as sentenças são diversas entidades que cada vez mais, por vias indiretas ou não tão indiretas assim, mandam na nossa vida. Da Máfia russa às grandes empresas (ou corporações, como hoje é chique dizer) e aos traficantes de morro cariocas, há um emaranhado de redes que nos envolve por todos os lados e não adianta acreditar nessa bobagem de que cada um manda no seu próprio destino, porque até os projetos pessoais não são mais produto da vontade individual, mas do que é imposto, muitas vezes sem nem anestesia, pelas condições sociais.
Como patriota, almejo que o nosso Brasil se destaque no concerto das nações e, com sinceridade, acho que, talvez por desatenção e hábito de andar na rabada, ainda não percebemos como já progredimos, certamente muito mais do que a maioria dos outros países. Proponho que, nas próximas eleições — que seriam as últimas tais como as conhecemos hoje — se estabeleça uma Assembléia Nacional Desconstituinte, cuja única finalidade será elaborar uma Constituição de acordo com nossa realidade e que não precisaria de mais que um artigo, ou seja: "Artigo Único: O Brasil não tem Constituição." Ninguém a cumpre mesmo e se pouparia o trabalho e a angústia dos que a desejam ver obedecida. Em seguida, através de uma série rápida de medidas complementares, abolir-se-ia de vez o Estado, talvez permanecendo apenas um presidente, com a atribuição de fazer discursos, dar medalhas e empreender viagens ao Exterior, mais ou menos como já é hoje. E o Congresso poderia ser privatizado, para continuar, sob patrocínio comercial, a distrair a população com CPIs, também mais ou menos como já é hoje.
Vejam bem, não se trata de uma proposta antiquada, não sou um anarquista fora de moda. Chamaremos o novo esquema pelo nome original de "poliarquia realista". Ou seja, reconheceríamos, por exemplo, que quem manda nos morros são os traficantes e bandidos, muitos dos quais já de muito assumiram funções administrativas, assistenciais, judiciais e policiais. Cada área territorial e cada setor de atividade se adequaria a essa poliarquia. E não precisaríamos mais temer, como já tememos, que todo o nosso dinheiro fosse tungado pelos impostos, porque tudo seria terceirizado e nos cobrariam apenas por serviço prestado. A privatização das estatais, das estradas e de outras atividades antes exercidas pelo Estado não bastam. Privatizar-se-ia tudo, da polícia a ruas, calçadas e praias. Quem quisesse passar por determinada rua pagaria, quem não pagasse não teria direito a utilizá-la. Quem precisasse de policiamento pagaria diretamente por ele, quem não pagasse não o teria. Muito melhor do que pagar impostos e não ter direito a nada, como agora, para não falar que cada um de nós também poderia cobrar por qualquer coisa que fizesse, desde parar o carro para o pedestre atravessar, até retribuir um cumprimento (a dez centavos por "bom dia", eu defenderia uma boa notinha, aqui no Leblon). Enfim, o que proponho mesmo é que assumamos a esculhambação como nosso destino histórico de cabeça erguida, entrando no milênio finalmente conciliados com a nossa até agora nocivamente reprimida vocação inata.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 12/12/1999.