Juro a vocês que já me ocorreu, embora não muito seriamente, mandar para o jornal uma página apenas com os seguintes dizeres: "Queridos leitores, pela absoluta falta de algo politicamente correto a dizer, escrevo somente para comunicar que hoje não vou escrever nada." A inquietante sensação de que o jornal não aceitaria tal colaboração ou até, num gesto caridoso, procuraria mandar internar-me numa clínica psiquiátrica me faz enxotar a idéia sempre que ela, como hoje, me surge. Mas está ficando difícil mesmo.
Alguém já comentou que, se a pessoa quer ser de fato politicamente correta, não contará ou apreciará mais nenhuma piada, pois a maior parte delas faz gozação com alguma categoria e não se pode fazer gozação com categoria nenhuma, nem mesmo, talvez, bandidos, porquanto haverá os que pensam que, sendo passíveis de regeneração, os bandidos não podem constituir alvo de chacota ou gozação, o que somente aumentaria os ressentimentos e traumas que são tidos como os fatos geradores de sua criminalidade. Na verdade, pensando bem, quem quer ser politicamente correto cem por cento não deve falar nada, porque tudo pode ser levado na conta de politicamente incorreto.
Há muitos anos, escrevi aqui que não gostava de filme dublado. Isto não quer dizer que eu seja contra a dublagem dos filmes e queira ver os dubladores desempregados. Pelo contrário, sei que eles até precisam de melhores condições de trabalho e prestam um bom serviço a uma sociedade onde muita gente não consegue ler legendas e outra parte, mesmo tendo TV, ou não dispõe da tecla SAP ou não entende a língua original. Só disse que eu, pessoalmente, como, aliás, muitos outros, prefiro assistir ao filme com sua trilha sonora original. Mas, lamentavelmente, tratou-se de um grave ato de incorreção política, porque recebi cartas me xingando pela minha "posição contra os dubladores". Isto quer dizer que, para você ser politicamente correto, tem que gostar de filmes dublados. Venho fazendo esforços nesse sentido, mas não tenho tido muito êxito, de forma que faço aqui um mea-culpa e não toco mais no assunto.
Quanto ao vocabulário, a atenção tem que ser redobrada. Já não emprego, por exemplo, "há nuvens negras no horizonte", porque, se de fato nuvens negras ou fuliginosas costumam, como todo mundo sabe, prenunciar mau tempo, não quero com isso ofender a população negra, embora, ao usar a metáfora, não esteja nem de longe pensando nos negros e abomine qualquer tipo de preconceito. Nem a negritude das nuvens tempestuosas tem nada a ver com a negritude humana. Mas, se usar a expressão, mesmo como exemplo, chega carta reclamando, como provavelmente chegarão algumas, depois disto que acabo de escrever.
Outro dia, numa crônica em que pensava ter homenageado a mulher brasileira pela passagem de seu dia, cheguei a gabar-me em casa da minha integral correção política, pois é verdade que, apesar de ter sido criado para machista, sempre fui, no bom sentido, até feminista. Mas, ai de mim, caí na besteira de dizer, a folhas tantas, que as mulheres eram patrimônio nacional e recebi uma carta que, embora reconhecesse algum mérito na crônica, fazia objeções ao uso da palavra "patrimônio", com certeza porque ela se deriva de pater, que significa "pai" em latim, ou seja, homem — e, portanto, em última análise, deixei escapar meu mal disfarçado machismo. Mas que diabo de palavra ela queria que eu usasse? Matrimônio? Fiquei um pouco confuso e até hoje me atrapalho bastante com esse cruel dilema. Se a moda etimológica pegar, estamos fritos, porque nem mesmo poderemos chamar alguém de coitado, devido ao sentido original da palavra, que não declino aqui, para os que não sabem, porque este é um jornal de família.
Escrevi também uma crônica em que falava na inexistência concreta, ou seja, na esfera jurídica, de direitos animais. Ah, para quê? Senti-me um verdadeiro carniceiro (eu não mato nem barata, a não ser que ela tente me beijar) e me vi compelido a escrever nova crônica, em que explicava que o que eu queria dizer era que os animais não podem, por lei e incapacidade física e mental, constituir advogado, assinar contratos, ter carteira de trabalho, servir de jurado e assim por diante. Não adiantou nada, só chegaram mais xingamentos e hoje sofro delírios persecutórios ao entrar numa churrascaria e atravesso a rua, quando há um pombo na calçada diante de mim, pois também fui vilipendiado por afirmar que não gostava de pombos e, sei lá, de repente um pombo na minha frente tem um enfarte fulminante e eu acabo sendo processado, embora — chato ter de lembrar isto — não pelo pombo ou sua família, mas por um columbófilo ultrajado.
Quando, outra vez, me solidarizei com policiais que são mortos exclusivamente porque são policiais, também recebi uma avalanche de protestos. O politicamente correto é ser contra qualquer policial, por mais limpa ou brilhante que seja sua folha de serviços. Quer dizer, o certo é ficar a favor do assaltante de ônibus que descobre que um passageiro porta carteira de policial e o mata simplesmente por esse fato. Também tenho bastante dificuldade em internalizar isso, mas não discuto mais, guardo minha maneira de pensar no meu próprio bestunto.
Enfim, não creio que haja salvação, em quase nenhuma área. Uma possível exceção foi levantada num destes domingos, quando, no boteco, um companheiro de mesa que sofreu certos revezes amorosos queixou-se amargamente de que não se podia fazer mais piada com nenhuma categoria, raça, orientação sexual, nacionalidade, nada. "Mas piada de corno pode", disse ele, "e eu acho isso discriminatório". Tendi a concordar, mas a mulher de outro companheiro interveio.
— É porque não é minoria — disse ela.
— Ah, bom — disse ele, olhando em torno com satisfação.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 08/04/2001.