Aventuras baianas

(João Ubaldo Ribeiro)

Estive na Bahia, com o propósito de reencontrar amigos e descansar.

Já um pouco enferrujado em matéria de baianidade, esqueci que se trata de propostas inconciliáveis. Ou bem descansar, ou bem rever os amigos. Não fui a Salvador, fui a Canavieiras, cidadezinha admirável, no delta do Rio Pardo, e encantadoramente agradável, com um céu sempre azul e um mar indescritível.

Quanto aos amigos, uma beleza, a começar pelo baluarte muçulmano Zeca Harfush, passando pelo prefeito Boaventura, melhor conhecido como Boinha.

Quanto ao descanso, vejo-me aqui quase sem forças para tripular o teclado, depois de uns programinhas bobos, a maior parte envolvendo refeições pantagruélicas de várias horas de duração, seguidas prontamente de mais comida. Isso além da viagem em si, que depois conto.

Tivemos tempo para algumas novidades interessantes. Por exemplo, uma das salas do café da manhã do hotel (hotel, não; resort, que é que vocês estão pensando) é freqüentada por passarinhos folgados, inclusive um sebinho capenga, que, apesar de deficiente físico, parece passar muito bem com a sua perninha torta. Aparece regularmente todos os dias de manhã, para beliscar a comida dos hóspedes na mais completa sem-cerimônia. É casado, mas a fêmea aparentemente não partilha de seus hábitos boêmios e quase nunca dá o ar de sua graça. Ele não. Vai de uma mesa a outra, dá uns pulinhos em direção aos pratos e faz sua escolha com absoluta cara-de-pau. Além deles, chamava também a atenção um operoso casal de joões-de-barro, preocupado em catar material para a construção do tradicional quarto-e-sala onde vivem os joões-de-barro. Em frente, chegando majestosamente ao mar, o Rio Patibe, que não se incomoda em ser chamado pelo apelido de Patife e, pelo contrário, é um príncipe de imperturbável serenidade, deslizando entre suas margens de vegetação cerrada.

Que outras lembranças trago? Moquecas de peixe enormes, ostras enormíssimas, pitus igualmente, caranguejos e guaiamus hercúleos, almoços de seis horas, casos, canções, discursos e recitativos, tudo na melhor tradição de minha terra. E mais poderia contar-lhes, se não corresse o risco de matá-los de inveja, porque qualquer um se sensibilizaria com tanta beleza e tanta amabilidade. Bem verdade que houve uma entrevistazinha, para o jornal da terra (impresso a cores; sorry, periferia), mas não doeu. Nem me perguntaram se eu morava no Rio mesmo, questão inicial da maioria das entrevistas que dou, antes de começar a responder às perguntas habituais, que dessa vez não foram tão habituais assim.

E, apesar de cansado, não teria queixas, se não fosse a viagem de volta.

Saímos pelo aeroporto de Ilhéus, que fica a uns 150 quilômetros de onde estávamos. Tivemos de ir de carro e, devido a alguns mal-entendidos, partimos com a passagem marcada para o dia anterior e um pouco atrasados.

Mas não haveria de ser nada. O Três, conhecido por esse nome porque é o carregador número 3 do aeroporto há décadas, já nos havia garantido lugar, num vôo dessa companhia que bota um tapete vermelho diante dos que descem ou sobem no avião. Em terra, atendimento impecável, com o Três, que, de celular em punho, tomava as providências, funcionando como uma agência de turismo moderníssima, e a simpática mocinha do balcão, que fazia tudo entre sorrisos e boa vontade. Infelizmente, pela lógica dos negócios, teríamos de ir mais ao Sul, a São Paulo e de lá fazer o transbordo para um vôo da Ponte Aérea com destino ao Rio.

Foi um vôo um tantinho carregado de suspense. A bandeja em frente ao cavalheiro que se sentou junto a mim, teimava, apesar de travada, em cair à frente dele a cada dois minutos, o que há de admitir-se ser um pouco enervante. A equipe de bordo anunciava que obedecêssemos aos avisos de não fumar e apertar cintos, mas nenhum desses se acendia. O painel de luz, botões e outros trequinhos que ficam em cima da cabeça das pessoas ameaçava despencar, ou então chamava a comissária de bordo sem que ninguém apertasse botão nenhum. A cadeira de minha mulher não se reclinava, com a explicação de que a coluna vertebral dela, que não é nenhuma Brastemp, devia ser compreensiva e parar de doer, porque a poltrona se encontrava em frente a uma saída de emergência, fato que, obviamente, não ocorreria, se houvessem providenciado uma arrumação de poltronas menos enclausurante. E, finalmente, a descarga de um dos banheiros não funcionava. Estávamos, eu e outro passageiro, debatendo essa vexatória questão, quando o comandante, que por acaso se encontrava no banheiro em frente, saiu e nos perguntou o que havia.

— A descarga não funciona.

— Com certeza? — perguntou ele amistosamente. — Vocês apertaram o botão direito? É porque a de cá também parecia não funcionar, mas, apertando certo, funciona.

— Então esta daqui, sabendo que o senhor é o comandante, talvez o respeite e obedeça.

Ele marchou confiante, apertou o botão e a descarga ignorou a hierarquia, porque continuou a não funcionar. Enfim, foi um vôo prenhe de emoções, em que já imaginávamos que o trem de pouso fosse de patinetes, até que chegamos a São Paulo e ficamos, na amável companhia de um despachante, esperando que um carro nos viesse pegar, para o transbordo, que seria imediato. Não foi lá tão imediato assim e, na sombra do avião, ali mesmo na pista, fazia frio, enquanto no sol fazia calor. Mas embarcamos, desta vez num avião que realmente parecia novo, o que nos era exaustivamente explicado pelas telinhas. Tudo bem, descemos no Rio, esperamos as malas e só chegou uma delas. Tivemos que esperar pela outra, que acabou chegando no vôo seguinte.

Ou seja, nem tudo são flores, quando se fazem certas viagens. Da próxima vez, vou dispensar o tapete vermelho e preferir um avião posterior à 2.ª Guerra Mundial. Perdão, leitores, mas não foi ainda desta vez que vocês conseguiram livrar-se de mim, estou de volta.