Problemas na idéia

(João Ubaldo Ribeiro)

Meu querido amigo, o finado Luiz Cuiúba, sempre me lembrava que d.

Madalena, que foi minha professora em Itaparica, afirmava que eu tinha um problema na idéia. "Não me venha com suas conversas malucas", dizia ele. "Se lembre de que d. Madalena sempre sustentou que você tinha um problema na idéia. Você sempre teve um problema na idéia e agora está ficando pior, depois que leu livros demais e o miolo empedrou ou amoleceu, não sei qual dos dois."

Considerando que Cuiúba, que pescou e brincou comigo até praticamente sua morte prematura, me conhecia a fundo e levando em conta que d. Madalena não emitia juízos irresponsáveis, sou obrigado a reconhecer que, sim, tenho um problema na idéia. Aliás, tenho a idéia cheia de problemas. Esperava melhorar com o passar dos anos, mas a chamada realidade nacional não ajuda e, com freqüência, depois de ler os jornais do dia, posso ser visto, aqui no terraço de meu tríplex de luxo no Leblon, andando de um lado para o outro, erguendo os braços para a estátua do Cristo Redentor, franzindo a face em esgares dementes, discursando para mim mesmo e cometendo outros atos claramente ditados por quem tem problemas na idéia.

Que recordo da leitura trêmula dos jornais? Lembro que, apesar de todo mundo saber que há roubalheira por todos os cantos do País, o presidente faz questão de que não se instale uma CPI da corrupção, em nome, acho eu, da governabilidade do País. Quer dizer, melhor governar corrompido do que não governar — como se, aliás, alguém estivesse governando. Lembro que o dr.

Antônio Carlos e o dr. Jader Barbalho estão, embora discretamente, se aproximando. Contam-me que quebrar o segredo do painel de votação do Congresso é coisa velha, manjada e realizada praticamente desde que o painel existe. (O que, aliás, me faz pensar duas vezes sobre se os candidatos em que votei, nas nossas moderníssimas urnas eletrônicas, que humilham os primitivos americanos, receberam mesmo meu voto; talvez tenham conseguido um brilhante substituto da eleição a bico de pena: a eleição a clique de mouse.) Lembro que prédios residenciais, delegacias, instalações das próprias Forças Armadas, agências bancárias, aeroportos e qualquer outra coisa em que se pense são invadidos por bandos bem mais armados do que a polícia, para não falar que, na polícia, todo dia aparece alguém denunciado pela prática de ato ilícito. Lembro que o dólar se encontra na estratosfera e as bolsas já talvez no subsolo, com a sinistra (para uns, que vão saber antes, como das outras vezes, não; mas, para nós, sim) previsão de que poderá haver uma maxidesvalorização do real. Lembro os crimes hediondos noticiados quase todo dia, a miséria que nos ronda — enfim, lembro tudo isso que vocês também lembram, mas não têm jeito a dar, como eu tampouco tenho.

E agora vem a ameaça de racionamento de energia. Não há problema na idéia que resista e o meu se agrava a cada segundo. Agindo com a habitual presteza, o governo está traçando planos para enfrentar a questão, que na verdade não foi causada por governo nenhum (nem este, que está aí há seis anos, jogando conversa fora em várias línguas), mas por São Pedro. Estou escrevendo antes deste domingo, mas não creio que, até agora, tenha saído o plano, embora já tenha saído a perspectiva de que as exportações nacionais vão baixar vertiginosamente e o nosso déficit vai aumentar como suflê em forno quente. Por enquanto, a previsão é de lampião e vela mesmo, até porque estamos muito mal-acostumados com esse negócio de energia elétrica (somos, dizem, a oitava economia do mundo e somos, também dizem, o octogésimo quarto país do mundo em consumo de energia, patente demonstração de nossa esbórnia energética). E apagão, em qualquer esquema, significa que nem esses telefones que hoje praticamente todo mundo tem em casa, com unidades móveis, vão funcionar, porque precisam estar ligados na rede elétrica. Corrida a lojas para comprar telefones antigos, daqueles que só esticavam o fio, mas não podiam ser desplugados? Para não falar em bancos, sinais de tráfego e tudo o que depende de computadores, ou seja, tudo e ponto final.

Acho que posso enumerar algumas medidas em cogitação: 1) convocar todos os magos, pajés, pais-de-santo e assemelhados para fazer chover nos reservatórios antes do prazo fatal; 2) depois de protestos da Igreja Católica, promover procissões em todos os municípios do País, com a finalidade de aplacar a fúria seca de São Pedro; 3) proibir expressamente que se comemore o dia de São Pedro em qualquer lugar do País; 4) criar a CPQV (Contribuição Provisória — Permanente — de Queima de Velas), a CPQP (Contribuição Provisória — Permanente — de Queima de Pavios) e a CPUP (Contribuição Provisória — Permanente — de Uso de Pilhas), cuja arrecadação será destinada a obter recursos para o conserto do sistema nacional de produção de energia, embora, na verdade, o governo termine por precisar usá-las para tapar os rombos causados pelas roubalheiras na Sudene, Sudam ou qualquer outra roubalheira no nosso vasto sortimento, que quem sempre paga somos nós; 5) mandar todo mundo desligar o chuveiro elétrico e os boilers, depois de pagar a Contribuição Provisória — Permanente — para Desligamento de Chuveiro Elétrico e Similares; 6) instalar geradores nas casas e escritórios de todo mundo que seja do governo ou tenha parente no governo, para evitar problemas sociais; 7) fazer vasta campanha publicitária otimista, com o slogan "Escurece, Brasil!", mostrando as inúmeras vantagens de ficar sem luz, em que vocês nunca tinham pensado; 8) provar como o Brasil é mais uma vez um exemplo para o mundo, mostrando que energia elétrica e nada dessas besteiras têm realmente importância, contanto que o nosso presidente seja poliglota e proteste veementemente contra tudo o que o governo dele fez.

Creio que poderia imaginar outras sugestões que, tenho certeza, estarão sendo cogitadas no momento, mas o espaço acabou e também preciso defender-me, porque meu ganha-pão estará ameaçado. Alguém por aí tem um computador a querosene para vender?