Não sei ao certo, mas desconfio que já escrevi uma crônica com esse mesmo título, meio plagiado do Almodóvar. Se já escrevi, desculpem; debitem o lamentável fato à minha crescente senilidade e à circunstância de que escrevo crônicas desde os 17 anos de idade, ou seja, há mais de 40 anos e, nesse tempo todo, é bastante provável que tenha, sem saber, escrito a mesmíssima crônica mais de uma vez. Como nunca guardei nenhuma (muitas das que saíram em coletâneas foram tiradas dos arquivos dos jornais), a não ser mais recentemente, depois do advento do computador, tenho praticamente certeza de que, pelo menos um par de vezes, isso já aconteceu.
Mas estou mesmo à beira de um ataque de nervos. Sou obrigado a provocá-lo, pois, por força da profissão e do hábito, como já contei aqui, tenho que ler jornais, mas o faço com cada vez mais resistência. Como também já contei, sou chorão e volta e meia me vejo de queixo tremendo como uma criança e enxugando lágrimas nos cantos dos olhos. A gloriosa farmácia Edith, da qual sou freguês irredutível aqui no Leblon, pode testemunhar o meu volumoso consumo de lenços de papel, nas maiores caixas — e gasto sempre muito, porque é praticamente impossível tirar só um lenço de papel, pelo menos no meu caso. Sempre vem um bolo deles, que me recuso a desembolar e que uso como se fosse um só, enchendo uma cesta de papel atrás da outra. Minha choramingação já deve ser responsável pela destruição de um número astronômico de árvores.
Por que estou à beira de um ataque de nervos? Ah, meus caros amigos, por não sei quantas razões, como, aliás, muitos de vocês certamente estão. A primeira é meu ganha-pão, ou seja, os caraminguás que boto em minha conta bancária em conseqüência de me pagarem para eu escrever e comprarem meus livros. Passo de oito a doze horas por dia em frente a este monitor que presentemente encaro e sei que não vou conseguir (continuo achando que ninguém vai) cortar os tais 20 por cento exigidos. Creio que vou ter de mudar de profissão, principalmente se fizer um dia quente, porque aí o computador exige ar-condicionado. Deus que me livre de tal transe, porque então serão seis dias de suspensão, em castigo por minha irresponsabilidade. Não tanto por causa das crônicas, que poderão mudar de dia de escritura e sempre haverá algum amigo a cuja casa eu possa ir para escrevê-las. Mas, quanto aos livros, é impossível. Às vezes, só um dia de interrupção pode fazer todo o trabalho desandar. Alegarão alguns defensores da literatura brasileira que, com isso, o racionamento estará produzindo um efeito inestimavelmente valioso, mas a verdade é que eu tenho de prestar atenção no dinheirinho da feira e as perspectivas não fazem bem a meus nervos.
E, pior ainda, não acredito que o racionamento, que, pelo menos até agora, me tem parecido o resultado de um saco de gatos molhados, funcione. Acredito, como todo mundo com quem tenho conversado, em apagões — e apagões não-programados, resultados de embananações na distribuição e nos piques de consumo não previstos. Tenho pensado muito em como será possível agüentar algumas horas em elevadores parados entre dois andares por falta de luz e, na próxima reunião do condomínio, vou sugerir a colocação no elevador de uma lanterna de pilhas, uma garrafa térmica de chá de camomila gelado e um peniquinho. Nunca se sabe.
E de novo me obrigam a andar no calçadão. Já tentei e cheguei a andar vários meses, mas nunca consegui ser invadido pela admirável sensação de euforia e bem-estar que supostamente tomaria conta de mim, como toma conta de todos os calçadistas. Pelo contrário, sempre achei aquilo um negócio chatíssimo, além de sofrer a humilhação de ser rotineiramente ultrapassado por um capenguinha de que meus leitores mais antigos devem lembrar-se. Hoje, no dia em que escrevo, voltei de lá um trapo, um verdadeiro farrapo humano. Bem verdade que tenho sido poupado pelo capenguinha, que anda meio sumido, mas encarei uma gordinha e perdi vergonhosamente. E não era qualquer gordinha, era uma gordinha respeitabilíssima em quem muita gente apostaria, se ela enfrentasse o Maguila. Disse a mim mesmo que era um desrespeito, que não podia ser, mas, botando os bofes pela boca, tudo o que lembro é o bumbum da gordinha, desaparecendo no horizonte à minha frente.
No front financeiro, não há inflação nenhuma, mas a verdade é que, se dinheiro é dólar — o que me parece uma verdade universalmente aceita — nós todos, a não ser quem ganha em dólar, já tivemos nossa renda cortada em mais da metade, nos últimos tempos. E deram para aparecer avisos sinistros de que pode haver uma maxidesvalorização do real, com as conseqüências horripilantes que isso nos traria, até mesmo porque as fracas exportações brasileiras não iriam poder beneficiar-se disso, por causa da crise de energia. Menos dinheiro no nosso já combalido bolso, cada vez menos.
E, finalmente, virei fiscal de baiano. Porque sou conterrâneo do dr. Antonio Carlos Magalhães, me incluíram na lista dos que o estão apoiando ou exigiram que eu rompesse com os que o apóiam. Sempre me dei pessoalmente bem com ele, mas também sempre, como ele mesmo está cansado de saber (e nunca ligou, eis que sou um opositor sem peso político algum) lhe fiz oposição. Mas nem apóio, nem patrulho. Tinha graça que eu rompesse com amigos preciosos somente porque eles não pensam como eu. Quem quiser tem o direito de ser carlista, assim como paulistas têm o direito de ser malufistas ou cariocas têm o direito de ser brizolistas. Oposição política é uma coisa, inimizade é outra, mas aqui parece que a gente tem a obrigação de atirar em quem quer que pense diferentemente de nós, assim como os motoristas acham que têm o direito de atropelar e matar qualquer pedestre que atravesse a rua fora das regras. E, finalmente, o mais doloroso de tudo: responder afavelmente aos cumprimentos de "tudo bem, meu vice?". Este nosso país e o Vasco ainda me matam.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 03/06/2001.