Grandes e pequenos

(João Ubaldo Ribeiro)

Eu devia estar mais tranqüilo, mas não estou. A dra. Anadyr (não sei se ela é doutora mesmo, mas vou logo dando o título, conheço meu lugar), corregedora-geral da República, nomeada para prender e arrebentar corruptos e corrupção, disse, segundo li nas gazetas, que a corrupção no Brasil é um monstrinho, não um monstrão. Até agora, depois de 90 dias no cargo, de acordo com o que também li, ela está aguardando relatórios e informes solicitados a diversos órgãos públicos, sobre inquéritos e processos, e não lhe chegou nada ou quase nada às mãos. Enquanto isso, atende a e-mails reclamando contra as injustiças cometidas por funcionários públicos e até, também soube, embora não possa afiançar, queixas de brigas com síndicos de edifícios e barulho na vizinhança. Tenho pensado em escrever a ela sobre uma firma de assistência técnica que chamei outro dia e que, me cobrando os olhos da cara, não fez nada certo.

A inquietação é dupla, embora um lado exclua o outro. O primeiro lado me traz à lembrança a afirmação do Homem, não faz tanto tempo assim, de que o Brasil é um país fácil de governar. A julgar pelos meses mais recentes, acredito que ele tenha mudado de opinião, ainda que as revigorantes viagens que faz ao exterior para nos orgulhar de seu poliglotismo certamente contribuam para elevar seu ânimo e o incentivem a espinafrar seu próprio governo, como gosta muito de fazer, ou até seu próprio povo (para mim ele é sueco, não me conformo em que algum carma ingrato o tenha feito presidente do Brasil e não primeiro-ministro da Suécia). Desta forma, a avaliação da dra. Anadyr talvez não seja a mesma daqui a algum tempo, ou muito tempo, porque, pelo visto, ela não é, nem quer ser, o Flash.

O lado oposto da inquietação é que talvez ela honestamente ache que não temos grandes corruptos, mais um golpe para o orgulho nacional, depois que a nossa seleção bandida se revelou pé-de-chinelo e nem em futebol nos levam mais a sério. Quer dizer que, além de não termos grandes figuras em nenhum aspecto da realidade nacional, ainda por cima não podemos aspirar senão a um lugar de figurante entre os corruptos. Não temos grandes corruptos, temos corruptos medíocres, onde não sobressai figura alguma capaz de ser levada em conta num cânon feito por algum americano sobre o ranking da corrupção. Vergonha, vergonha, nem na ladroagem conseguimos chegar perto do topo.

Até mesmo por uma questão de orgulho patriótico, ouso discordar, embora admita que não tenho (nem quero; não almejo desfrutar da experiência de ter minha cintura seccionada por uma motosserra, por me meter onde não fui chamado) provas do que afirmo. Tenho apenas evidências subjetivas. O Jabor, outro dia, escreveu algumas opiniões desairosas sobre as caras de nossos líderes e governantes. Tendo a estar de acordo com ele e chamo a atenção para o exemplo de Abraham Lincoln. Segundo se conta, Lincoln se recusava, naqueles tempos em que a Casa Branca era bem mais simples, a receber um senhor que aguardava uma audiência havia semanas. Um auxiliar, incomodado pela situação, interpelou o presidente.

— Não vou receber esse sujeito, ele não vale nada — disse Lincoln.

— Ah, o senhor já o conhece?

— Não.

— Mas então o senhor vai negar audiência a esse homem simplesmente porque não gostou da cara dele?

— Isso mesmo. Depois de uns 40 anos, o sujeito tem a cara que merece e esse daí não vale nada mesmo.

Se Lincoln fez isso, sinto-me apoiado pela História. De fato, sempre me pareceu que, aí pela curva dos 40 anos, a bondade e a dignidade se refletem no semblante e na postura do indivíduo, assim como a canalhice e a velhacaria. O sujeito pode até disfarçar grande parte do tempo, afetando ser quem não é, mas acaba se denunciando. E a maioria não consegue ocultar a solércia estampada em sua cara e seus gestos. E a verdade é que as caras austeras dos muitos acusados de corrupção no Brasil são transparentes máscaras para a safadagem ou a delinqüência pura e simples. A gente olha e vê com toda a clareza que as acusações, mesmo sem provas, devem ser verdadeiras.

A dra. Anadyr que desculpe meu modesto palpite, mas, temos, sim, grandes corruptos. A não ser, é claro, que roubar algumas centenas de milhões de dólares do dinheiro público não seja considerado grande corrupção. Precisamos valorizar o produto nacional. Temos grandes corruptos, sim. Bem verdade que contamos com uma infinidade de pequenos corruptos, como fiscais de impostos que tomam uma merreca do português do boteco, ou policiais que levam um por fora para esquecer uma infração no trânsito. Mas esses, se flagrados, costumam ser exemplarmente punidos.

Já o grande corrupto não, o grande corrupto não vai para a cadeia e, costumeiramente, o contribuinte acaba por pagar a conta. Assim como existem grandes escritores e escritores menores, existem os grandes corruptos e a grande massa de pequenos corruptos, aí compreendidos os que subornam fiscais ou guardas de trânsito. E a realidade, apesar de distorções, nos é mostrada pela mídia (odeio esta palavra, mas odeio ainda mais receber cartas sobre como não se usa mais a palavra "imprensa" — falada, escrita ou televisionada, dizia-se antigamente) todos os dias. Não estou dizendo que o juiz Nicolau é corrupto, porque ele ainda não foi submetido a julgamento e, se for absolvido, como não é impossível, quem acaba entrando em cana, por calúnia, sou eu. Mas já está sendo tratado como grande corrupto. Se não fosse tido como um grande corrupto não estaria sendo alvo do tratamento deferente que lhe tem sido estendido. Encontra-se em grave estado de depressão e precisou retornar à sua mansão, para encomendar, num gesto de fina ironia, pizzas entregues em casa. Vão ver se algum pequeno corrupto recebe esse tratamento. Não, dra. Anadyr, a senhora fere os brios brasileiros. Temos grandes corruptos, sim. Só que, perguntando a eles, não vão lhe contar nada, faz parte da ética corrupcional.