Tempos interessantes

(João Ubaldo Ribeiro)

Existe uma praga inglesa ou americana, cuja autoria não sei se é popular ou de algum escritor ou orador, que reza: “May you live in interesting times” — ou seja, “que você viva em tempos interessantes”. Difícil imaginar praga mais terrível, porque lembra logo ser assombrado por hordas assírias esfoladoras, ou estar no século XIV, no meio da epidemia de peste bubônica e da Guerra dos Cem Anos, ou durante a Revolução Francesa, ou debaixo do tacão de Hitler. Tempos interessantíssimos, sem dúvida, mas, como vocês hão de concordar, eles lá e nós cá. É como sempre pensei, até me ocorrer que nós mesmos, crescentemente informatizados e globalizados, estamos vivendo tempos muito interessantes, sob a hegemonia autocentrada do império americano, comandado por um homem que parece orgulhoso de sua ignorância truculenta.

No caso brasileiro, os tempos são interessantíssimos. Poucas coisas podem ser mais interessantes do que ver a Bahia, terra onde se faz festa o ano inteiro, terra da cordialidade e do “deixa pra lá”, transformar-se numa praça de combate e por um triz não declarar-se escancaradamente a guerra civil que já vivemos e fingimos não notar. Tenho família na Bahia e sei, através de conversas pessoais, do terror experimentado por todos. Aos delinqüentes aderiram os miseráveis e o que se viu foi uma das maiores cidades do país transformada num deserto e sujeita a todo tipo de violência, uma verdadeira Kosovo em termos menores. Mas que podiam, a qualquer momento, transformar-se em termos maiores. Fico imaginando o que sucederia, se os policiais em greve fizessem o que chegaram a ameaçar fazer, ou seja, soltar todos os mais de quatro mil presos da Penitenciária Lemos de Brito. O Exército, segundo me contam, cercou o presídio, mas que iria fazer, se os presos fossem todos soltos de roldão? Metralhar todo mundo? Dar um tiro de canhão de Urutu? Alguém já pensou nas conseqüências de um evento desses ou semelhante, que não chegou a acontecer, digamos, por sorte? Alguém já imaginou o que ocorreria — e pode ocorrer — se esse tipo de coisa contaminar o resto do país?

A única conquista deste governo, pelo menos que se note, foi iniciada no governo anterior. Ganhamos, durante algum tempo, uma moeda estável. Agora se vê o real despencando e, apesar de, espantosamente, o governo afirmar que a inflação deixou de existir e que nossa economia não é dolarizada, os salários não crescem e compram cada vez menos, além de assistirmos até mesmo a aumentos de tarifas públicas por causa da alta do dólar, inclusive as tarifas de energia elétrica, também em crise. Nega-se que vai haver tal aumento, mas tudo indica que a negativa é a enrolação costumeira e vai haver aumento, sim, da mesma forma que o custo de vida, mesmo “sem inflação” ou até com deflações eventuais, continua a subir todos os dias. Que é que não está em crise? Tudo está em crise, da Previdência à segurança pública, e as instituições sobrevivem aos trancos e barrancos, graças a sei lá o quê.

Agora, no Rio de Janeiro, o governador, que se afirma vítima de perseguição política (e pode até ser o caso, mas isso não explica supostos atos e palavras dele denunciados e já conhecidos de muita gente), se encontra sob suspeita. Certo, os telefonemas dele foram grampeados ilegalmente, mas, se ele não tivesse medo de nada ou culpa no cartório, não se oporia à divulgação das fitas. Não é isso o que todos dizem? “Minha vida é um livro aberto, minha conduta é conhecida do povo...” etc. etc. Mas, na hora de mostrar o que ele julgava estar falando sem que o povo viesse a escutar ou saber que alguém escutou, ele se indigna. Nega, mas não mostra as fitas. Inferência natural, embora com pequena possibilidade de erro: ele tem o rabo preso e não sabe como soltá-lo agora.

A sensação de caos e desgoverno aumenta a cada dia. O Estado, em rigor, não manda mais em nada, ou obedece a tantos interesses adversos ao nosso crescimento e à nossa maturidade política que não é mais governo. O Senado Federal, meu Deus do céu, é presidido por um homem sob uma enxurrada de acusações sem precedentes. Os políticos, nossos dirigentes e aspirantes a dirigentes são todos aglomerados pelo olhar do povo numa massa fétida e indigna da mínima confiança, pouco adiantando a alegação de que há políticos honestos ou que até sejam maioria. A verdade é que testemunhamos um escândalo atrás do outro e os maus contagiam os bons, num país governado lá de longe (na minha opinião, da Suécia), por medidas provisórias, improvisações de última hora e um Congresso que trabalha das terças às quintas.

E, para não dizer que não partilhamos com as nações desenvolvidas estes tempos interessantes, temos o aquecimento do planeta, que, segundo cientistas de renome, elevará a temperatura da Terra em uns cinco graus até o fim do século e o mar poderá subir até um metro, em relação ao de hoje, com o resultado de que, se meus descendentes (continuo a pensar que a melhor coisa do futuro é que já não estarei mais nele) quiserem continuar morando no Leblon, vão ter que se acostumar a viver em palafitas e chegar em casa na lancha-van que nossa inventividade logo criará. Para culminar, noticia-se que, em poucos anos, as mulheres não necessitarão de homens, nem mesmo para inseminação artificial, a fim de perpetuar seus genes. Ou seja, finalmente fomos, os homens, convertidos à nossa condição, já antes imanente, de zangões e — quem sabe? — varridos da face da Terra dentro de um par de séculos, pois se provará que Deus, na verdade, criou Adão de uma costela de Eva. Os machos que tratem de se acostumar, pois no futuro talvez venham a ser vistos somente em zoológicos.

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P.S. — Como o Mauro Rasi, também recebi uma carta da dra. Anadyr, em cujo nome toquei, numa crônica passada. Carta muito bem escrita e simpática, embora consideravelmente mais longa do que o espaço que ocupo aqui, uma das razões por que não a transcrevo. Acredito em seus bons propósitos e seu amor ao país, dra. Anadyr, a senhora não tem em mim um opositor. Terá até apoio, no dia em que se abrirem ao público fatos concretos que a senhora estará combatendo. Vamos, nesse caso, esperar. Esperar mais uma vez, é claro, mas, para quem tanto já esperou, mais um bocadinho não há de fazer diferença.