Não li o livro e posso estar dizendo uma perfeita sandice sobre ele. Mas não será sandice de modo geral. Sempre me pareceu quase insultuosa a idéia de que a História acabou. Para a maior parte dos habitantes da Terra, inclusive nós, a História sempre esteve — e tem continuado — bem distante do fim. Como acabou? Será interminável uma era em que a maior parte da humanidade é pobre e faminta e ainda se alastra tanta iniqüidade pelo mundo afora? Não haverá futuro — quem tem, tem; quem não tem, nunca vai ter? — para essa maior parte da humanidade, simplesmente porque os países prósperos enfrentam problemas para nós suntuários e acham que já chegaram aonde deveriam chegar?
A situação que agora experimentamos e que ninguém sabe em que vai dar subverte, muito mais fundamente do que parece, a nossa visão do mundo de hoje. Depois do desmantelamento do regime soviético e da chamada Cortina de Ferro, vivemos a “pax americana”, do mesmo jeito que, há muitos séculos, viveu-se a “pax romana”. Acostumamo-nos a ela, principalmente em países francamente colonizados, como o nosso. Adotamos os valores americanos, aspiramos a usar sua língua, queremos ser como eles, poderosos, nutridos, mandachuvas de aparência efusiva e boas-praças.
Essa paz, contudo, nunca foi tranqüila ou mesmo uniforme e, depois dos acontecimentos recentes, não está funcionando mais. Se não houver mudanças radicais de percepção, filosofia e conduta (e nada indica que haverá tão cedo), ela acaba de pular janela afora para sempre. Já vinha ameaçando acontecer e agora aconteceu. Conheço os Estados Unidos, falo bem a língua, tenho familiaridade com a cultura, já morei lá várias vezes, sei como é um país complexo demais para ser comentado em algumas linhas. Mas posso dizer que, nas primeiras imagens dos horrendos desastres desta semana, só vi indignação nas últimas horas da terça-feira, quando o estupor pelas dimensões do cataclismo já havia sido amenizado. Mas a primeira reação foi de estupor. Nada podia estar mais longe da cabeça de um americano comum que sua maior cidade e o centro de operações militares de seu império fossem atacados com tal precisão e êxito, a não ser nos filmes de ficção científica que eles fazem e no final triunfam.
Mas a indignação veio e é pior, pelo menos nas primeiras horas, porque impotente e porque só pode ser dirigida contra quaisquer grupos escolhidos arbitrariamente, sejam os árabes, os palestinos, os muçulmanos ou os estrangeiros em geral. Certeza de quem fez aquilo ainda não há e pode nunca vir a haver. E não há como responder a um claro ato de guerra contra um inimigo desconhecido. Isso faz com que a maior potência bélica e tecnológica do mundo, de certa forma a dona do mundo, se veja na condição esdrúxula de ter poder suficiente para destruir várias vezes o planeta e de nada adiantar esse poder, até por causa da sobrevivência dela mesma.
Já tínhamos visto o trailer deste filme antes. Essa mesma mais poderosa nação do mundo, não faz muitos anos, sustentou uma guerra inglória contra um pequeno país pobre e primitivo, para sair de lá escorraçada, no deprimente espetáculo das últimas retiradas, com gente se pendurando em helicópteros e pulando muros altíssimos. Seu poder, que incluía fazer o Vietnã ser erradicado do mapa, não pôde ser empregado na plenitude porque se sabia que, uma vez começada a destruição do mundo, seria muito difícil detê-la, e destruídos e destruidores estariam no mesmo barco.
Do mesmo jeito que, guardadíssimas as proporções, as soberanias de Estados como o brasileiro já não são inquestionáveis e os governos das grandes cidades, assim ou assado, são divididos com grupos como os dos traficantes do Rio de Janeiro, as novas guerras, como parece estar acontecendo com esta, já não serão de Estado contra Estado, mas de grupos contra Estados. Com o esfacelamento da União Soviética e a já viável formação de arsenais nucleares privados, não será, ou não é, impossível até detonar um artefato nuclear “particular” em qualquer grande cidade do mundo.
A solução não será encontrada, talvez tragicamente para presidentes com o temperamento e as convicções de George W. Bush, pelo uso da força. O uso da força com toda a certeza virá, mas pouco ou nada contribuirá para que o mundo, e os americanos em particular, deixem de ser inseguros, porque a tendência à insegurança parece ser irreversível. Um recipiente relativamente pequeno de certas toxinas ou agentes infecciosos pode causar danos incalculáveis ao abastecimento de água de uma cidade, ou, espalhado num metrô ou shopping center, pode contaminar populações inteiras. A violência não é mais monopólio do Estado, como na Teoria Geral do Estado clássica. Pelo contrário, acha fontes de legitimação cada vez mais abundantes, num mundo cada vez mais conturbado.
O poder militar e econômico dos Estados Unidos é, de certa forma, vítima de si próprio. É tão violento que não pode ser usado em sua inteireza, sob pena de atingir seus próprios titulares. E, por outro lado, guerra nas estrelas ou não, os Estados Unidos não podem esconder-se por baixo de uma cúpula invulnerável, até porque têm inimigos internos capazes de fazer estragos bem maiores do que já fizeram recentemente, minúsculos em relação ao que ocorreu em Nova York e microscópicos diante do que poderá ocorrer em qualquer lugar.
As atitudes mais recentes do governo americano, no campo internacional, apontavam para uma crescente arrogância diante dos interesses de aliados e para um renascimento do isolacionismo. Não vai poder continuar assim. A situação internacional terá que ser repensada e quem tem que puxar essa maciça e vital revisão (que, ai de nós, poderá não vir por bem) são os Estados Unidos e os países mais importantes do mundo. A magnitude dos eventos em Nova York ainda requererá muito tempo para ter suas conseqüências integrais avaliadas. Mas é inegável que a História se encontra em novo começo e Deus nos ajude que não seja o começo do fim, mas a penosa construção de um futuro em que esta espécie atrasada, que somos nós, poderá assumir a grandeza moral, espiritual e até física a que se têm arrogado civilizações que surgiram e desapareceram, sem que hajamos vencido a mesquinhez, a insensatez, a irracionalidade, o preconceito e a crueldade.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 16/09/2001.