Novidades importantes

(João Ubaldo Ribeiro)

A não ser que tudo tenha mudado repentinamente, basta pegar os jornais e ver. Praticamente só há notícias sobre a Batalha das Potências versus Sabe-se lá o Quê (Bin Laden é um detalhe, pois, com toda a certeza, ele é como as cabeças da Hidra de Lerna que, quando cortadas, rebrotavam de seu corpo monstruoso; imagino que há mais bin ladens do que suspeita nossa filosofia, mas cada um que pense o que lhe aprouver). Quero escrever sobre alguma outra coisa, mas me sinto desamparado, pois todo mundo, até o pessoal que trabalha no jogo do bicho aqui pelas ruas do bairro, entre um camelo na cabeça ou outro, vive conversando sobre isso. Faz uns dois dias mesmo, quando passava (não jogo no bicho, menos por princípio do que por incompetência na difícil arte de interpretar sonhos e transformá-los em milhares vencedores), para ir à padaria, excursão que empreendo religiosamente todos os dias, ouvi um anotador interromper sua escrita para pronunciar uma palestra sobre a Inglaterra que começava com o Duque de Wellington, vejam vocês. Arrependo-me um bocadinho de não ter parado para escutar, talvez aprendesse alguma coisa.

Mas não escreverei sobre a guerra, por hoje chega. Embora reconheça que o ser humano talvez haja nascido realmente para a guerra, exemplo do qual não me excetuo. Porque, senhoras e senhores, se alguém entre as senhoras e senhores estivesse precisando escrever uma croniqueta como eu e, lá fora, ecoasse a estridência de uma guitarra elétrica vinda de algum lugar das vizinhanças e ricocheatada pelas paredes dos edifícios, estou seguro de que alguns ímpetos homicidas o invadiriam, como a mim neste momento invadem. É por essas e outras que não ando armado. O bicho, certamente um adolescente, mas quem sabe um adulto de miolos de camarão, toca com a mesma habilidade com que uma anta artrítica tocaria, sem querer ofender todas as antas artríticas.

E, aqui no Leblon, lamentavelmente, o clima de guerra contamina os ânimos. No calçadão, que só tenho freqüentado com vergonhosa irregularidade, creio haver notado um pronunciado aumento no índice de competividade (o som da guitarra acaba de ficar mais alto; alguém de vocês tem uma bazuca aí, que possa me ceder por algum tempo?) Lembram-se do capenguinha? Pois desisti dele e ele de mim. Nem mais me dá a migalha de um olhar de desprezo, quando, qual Schumacher, me ultrapassa na hora em que estou crente que vou em quinta marcha, mas nunca vou acima da segunda. Só sinto mesmo o ventinho que ele provoca, ao chispar celeremente por mim, certamente rumo ao Arpoador, mas, se duvidar, ele passa o resto do dia em Santos, aonde deve chegar mais rápido do que os aviões da ponte aérea. A senhora gordinha de sandálias de dedo também já deve ter obtido índices olímpicos há muito tempo e eu continuo com a barriga em acentuado avantajamento. Se alguma esperança atlética houver para mim, estará na falsificação de meu passaporte para que nele conste minha idade como 85 anos (de novo, sem querer ofender todos os homens e mulheres de 85 anos) e eu ganhe uma caminhada de um colega nonagenário por meio umbigo de diferença.

E Herculano, nosso gavião? Ah, vocês nem sabem, ando preocupadíssimo com ele, porque descobri nos botecos que ele (ela, sustenta ainda minha mulher) é considerado um delinqüente por várias facções de pensamento aqui do Leblon. É que o Herculano — que é que ele vai fazer, se gavião nasceu e gavião morrerá? — faz coisas para os pombistas inadmissíveis, ou seja, comer pombos. Para mim, isso constitui motivo de admiração e gratidão, mas, para os pombistas militantes, que um dia destes são capazes de me mandar um envelope com polvilho anti-séptico, para que eu morra de antraz psicossomático, como já devem ter morrido diversos, trata-se de um desvairado assassino em série, que devia mobilizar as Forças Armadas para combatê-lo.

E existem também os donos de pássaros engaiolados, que acusam Herculano de decepar as cabeças de suas aves mesmo com elas dentro das gaiolas, sem comê-las. Trata-se, na opinião deles, de um gesto de crueldade gratuita. De novo, ergo ao firmamento uma palavra em defesa de Herculano. Na vida em estado natural, Herculano, como já enfatizei, é um gavião, que não compreende esse negócio de pássaro engaiolado, não foi acostumado a prateleiras de supermercado. Compreende de matérias relacionadas com perseguir e capturar outros animais para comê-los, do mesmo jeito que nós. Embora já quase não cacemos, também fazemos como muitos outros animais, de gaviões a formigas. O coitado só pode pirar, vendo aquela comida toda embalada e, na opinião dele, mal embalada, já que não consegue retirá-la das gaiolas. Quem manda criar passarinho em gaiola? Herculano é um exemplo vívido de problema de direitos humanos (gaviônicos, bem sei, mas tem gente que pensa que direito humano — esta expressão misteriosa — se aplica a tudo, inclusive a capim ou urtigas ou cupins).

Agora chega, agora não posso mais evitar a guerra leblonina. O Jimmi Hendrix do Pinel parou de tocar, mas subitamente algum promissor imitador de personalidades históricas faz uma estentórea reprodução de um discurso de Hitler e acho que prefiro o guitarrista. Desistamos do sossego, não é mais para a nossa geração. E bem que o gritador pode estar apenas mostrando uma vertente pioneira do rap, não a que simplesmente exalta estupros e tiros no ouvido, mas o talvez futuramente famoso “Nazi rap”. Tudo é possível, minhas amigas e amigos, fazer o quê? O mundo vai acabar, é claro, não podemos fazer nada. Nosso consolo é que ainda não mandam bactérias por telegrama ou e-mail. Vamos vivendo até lá. E vamos aí a esse programa dominical enquanto podemos, nem que seja somente arranjar uma varandinha para nos sentarmos, ouvirmos uma musiquinha ou lermos um livrinho e pensarmos sobre se não estaríamos mais felizes, se fôssemos o Herculano.