A primeira agarrada a gente nunca esquece

(João Ubaldo Ribeiro)

Manda a honestidade reconhecer que, sim, eu sofro algum assédio público. Como, por exemplo, me aconteceu no famoso e reputadíssimo boteco Tio Sam, sito aqui ao pé de onde moro. Estava eu posto em sossego, resolvendo os problemas nacionais em companhia de meus amigos Carlinhos Judeu (atenção, patrulheiros: não é anti-semitismo disfarçado, como disseram quando o mencionei faz muito tempo; Carlinhos é judeu mesmo e foi ele próprio quem se deu o apelido, para distingui-lo dos inúmeros carlinhos que com ele não se podem rivalizar em finura de trato), Bimba das Morena, Doorgal (assim como escrevo) Comandante e Schütt Chope... Sim, mas começo a escrever mal outra vez, cheio de parênteses e períodos demasiadamente longos, de maneira que reinicio.

Estava eu nesse dito famoso boteco do Leblon, na companhia de amigos e tomando guaraná com gelo em copo longo (só bebo guaraná se for de boa safra e em copo longo, com gelo), quando me batem no ombro. Viro o pescoço e deparo um senhor algo alcoolizado, porém ainda mantendo o equilíbrio, que olha meu copo e arregala os olhos.

— Muito bem! — me diz ele. — Muito bem!

— Obrigado — digo eu. — Mas muito bem por quê?

— Porque eu também sou diabético e...

— Eu não sou diabético. Eu...

— Eu também sou diabético igual a você e não dou a menor pelota para esse negócio de médico proibir a gente de beber, de comer isso, comer aquilo e já fui ao enterro de uns oito desses sacanas que me proibiam de beber.

— Mas eu não sou diabético. Eu...

— Eu sou diabético igual a você e estou me lixando para os médicos! Como tudo, faço tudo e, no fim de semana, encho a cara de uísque que nem você! Muito bem, muito bem!

— Mas por acaso isto aqui não é uísque, é guaraná.

— Grande savuá-fé, como dizem os franceses! Grande savuá-fé, você é meu ídolo por essas e outras. Eu sou diabético igual a você e não quero nem saber. Mando ver no meu uisquezinho e não sinto nada, esta barriga não é banha, é musculatura, pratiquei levantamento de peso na juventude, só não fui nas Olimpíadas porque naquele tempo não tinha brasileiro nas Olimpíadas, nem tinha ninguém aqui pra atestar que eu tinha conseguido o índice. Sinta aqui minha barriga, apalpe aí, pode meter o dedo, pode dar uma porrada nela, vamo lá, pode dar até murro!

— Não é preciso, eu acredito em você, sua condição atlética é visível.

— Pois é. Eu sou diabético igual a você e continuo tomando meu uísque à vontade. Você não é moleza, tou gostando de ver, com esse uísque enorme aí. É o que eu sempre digo à minha senhôra: se é pra tomar, vamos tomar logo tudo o que a gente tem direito. Vá lá no seu uísque, eu sou diabético como você e...

— Mas não é uísque, é guaraná.

Ah, para que falei isso, meu Deus do céu, porque ele, com uma cara maliciosa que logo se transformou em decepcionada, meteu a nariganga no meu copo e fez uma lavagem nasal.

— É guaraná!

— Eu já tinha lhe dito.

— Estou muito decepcionado, muito decepcionado. Quer dizer que você se rendeu também à máfia de branco? É uma grande desilusão, grande desilusão!

E foi embora sem mais uma palavra, enquanto eu, que não bebo lavagem nasal nem minha mesmo, mandava trocar de copo. Perdi um fã e acrescentei mais um episódio à minha triste história de assédios, eis que, ao contrário de amigos e colegas meus, jamais encontrei uma moça me esperando nua no armário do hotel, nem tive de correr de uma loura de biquíni gritando “me faz um filho, me amassa, me faz qualquer coisa, me bate na cara, faz o que tu quiser!” Não, só encontro lavagens de nariz mesmo e variantes que redundam na mesma coisa.

Quer dizer, não encontrava. Estive em Porto Alegre, por gentilíssimo convite da feira de livros que há 47 anos se faz por lá e é um belíssimo espetáculo e aí — como o Destino obra por caminhos insondáveis! — passei pelo meu primeiro agarramento, já posso botar banca. Encontrava-me eu num restaurante, na companhia, entre outros, do meu amigo Moacyr Scliar, quando, não mais que de repente, sinto um braço no meu pescoço, me dando uma gravata, cabelos longos me caindo pelo rosto e uma boca colada, com uma pressão de umas 20 atmosferas, na minha bochecha direita. Não consegui ver de quem se tratava, até que se descolou de minha cara o que parecia um desentupidor de pias e vi uma moça bonita, dando meia volta e saindo do restaurante. O Moacyr, com os brios justamente feridos, pois, afinal, o escritor gaúcho ali era ele, pediu um beijo também e ela se recusou altivamente. Eu, atarantado, perguntei se alguém ali conhecia a moça, todos disseram que não. E, finalmente, cheguei à penosa quão gloriosa conclusão de que tinha tomado minha primeira agarrada. Não interessa se vier a ser a única, meu currículo já está enriquecido e tenho testemunhas. Não há mais por que padecer de complexos e inveja de Caetano e Chico, viva o grande estado do Rio Grande do Sul, viva Porto Alegre, viva a grande mulher gaúcha. Te cuida, Cauby Peixoto!