Memória de Tom

(João Ubaldo Ribeiro)

Bem que fui convidado para um evento que minha amiga Scarlet Moon organizou recentemente, convocando para uma conversa pública alguns dos companheiros de Tom Jobim, mas não apareci. Balbuciei umas desculpas meio esfarrapadas, gaguejei e consegui declinar da honraria. Scarlet, sempre um encanto, entendeu a recusa, mas não explicitei a verdadeira razão para minha atitude, me deu vergonha. Não fui mesmo porque sou chorão e fiquei com medo de abrir o berreiro, na hora de falar. Tenho quase certeza de que choraria, como chorei no velório dele. Na semana de sua morte, em sessão da Academia Brasileira de Letras, tomei a iniciativa de propor um voto de pesar, que foi aprovado, embora eu não tenha terminado de formular decentemente a proposta porque, claro, chorei e fiquei com a voz trêmula e inutilizável.

Tom e eu éramos amigos especializados. Aqui no Brasil, nunca fomos à casa um do outro, nem sabíamos os respectivos números de telefone. Mas passamos um número incontável de tardes juntos, porque nossa especialidade era nos encontrarmos exclusivamente em botecos e churrascarias. Já em Los Angeles, onde eu o conheci, faz quase quarenta anos, eu ia de vez em quando à casa dele, embora a distância fosse imensa (Glauber só chamava Los Angeles de Los Lôngeles, pois tudo lá fica a milhas de distância), até porque ele me convidava, pedindo que eu levasse também umas cervejinhas. Ignoro como, mas soube que eu era formado em direito e, mesmo depois de ter-lhe explicado que jamais nem me inscrevi na Ordem dos Advogados e não tenho certeza de que fui pegar o diploma, ele me achava um advogado perfeito.

— Meu advogado é bilíngüe — explicava ele a quem me apresentava. — João Ubaldo ou John Ubald. Não é pouca porqueira, ele encara legalês em duas línguas, é mole ou quer mais?

Nessa condição, fui chamado pelo telefone uma vez, no meio da noite.

— Você é meu advogado, você tem que vir aqui — disse ele uma vez, alarmado. — Venha urgente, eu pago o táxi!

— Mas, Tom, eu...

— Tem dois marcianos aqui em minha sala, não estou entendendo nada do que eles falam, só você é que pode dar jeito na situação!

Acabei compreendendo toda a história. Tom morava numa espécie de condomínio, onde as ruas levavam nomes de mulheres, seguidos de “Place” (nunca sei se a dele era Norma Place ou Selma Place; ele sempre me lembrava, mas eu sempre me esquecia, como esqueço agora). Era um lugar sossegado, com regras estritas de convivência, entre as quais preservar o silêncio depois das dez horas da noite. Mas Caymmi estava lá com ele e os dois começaram a tocar piano e violão e a cantar, um exaltando o repertório do outro ou de terceiros, por eles tidos como exemplares. Criou-se, é claro, um clima de festa e uma velhota vizinha, que se tornou desafeta de Tom (não da parte dele, porque nunca o ouvi falar mal de ninguém, a não ser por algumas ironias espirituosas em que era mestre, pois dificilmente haverá um papo melhor do que o dele), chamou a polícia. Eram dois policiais, de capacete de motoqueiro e trajes para Tom aterrorizantes, razão por que ele inventou aquela história de marciano. Como ele ainda não falava inglês direito, e muito menos Caymmi, acabei me entendendo com um dos policiais pelo telefone mesmo, a festa acabou e a grave conjuntura foi contornada. Isso só fez reforçar minha condição de advogado.

— É um grande advogado — espalhava ele. — Me livrou da polícia com dois toques geniais e nem tiraram minhas impressões digitais, nem retrato de frente e de perfil, que é como eles fazem aqui. Grande advogado!

Já de volta ao Brasil, nunca mais tive de exercer minhas funções de causídico. Passei alguns anos sem vê-lo, até vir morar no Rio e bater com ele na churrascaria em que ele tinha mesa fixa, da qual passei a participar. Nossas conversas se davam ali e na Cobal do Leblon. À churrascaria ainda consigo voltar, embora poucas vezes e relutantemente, assim mesmo porque o ambiente mudou muito e, depois da partida dele, não me faz lembrá-lo com muita vividez. Mas à Cobal não volto, porque me vem uma saudade intensa de sua figura e sua conversa, e não dá para segurar.

A gente conversava sobre qualquer coisa, mas se formava uma platéia numerosa, quando iniciávamos debates ornitológicos e ictiológicos (dicionário, dicionário; domingo é dia de fazer um exerciciozinho, peguem esse cartapácio aí, botem os óculos e vão dar uma dicionarada, mens sana in corpore sano). Em matéria de aves ganhei somente uns dois debates, entre talvez centenas. Já quanto a peixe e marisco, obtive algumas vitórias expressivas. Mas os shows que tomei de Tom em matéria de aves foram homéricos, principalmente no dia em que ele me perguntou se eu achava mesmo que o urubu era um catartidiforme ou um ciconídeo. Opondo-se eloqüentemente à taxonomia vigente, Tom sustentava que o urubu merece ser um ciconiforme e fez uma palestra deslumbrante, de uns vinte minutos, a respeito de urubus, cegonhas, jaburus e correlatos. Imbatível.

Ah, encantadora leitora, gentil leitor, que saudade que tenho de Tom! Não existirá ninguém igual a ele, nunca. E aí, neste mundo besta, em que os amigos têm o mau gosto de morrer e a gente vê como vai ficando sozinha, não posso pensar nele sem — adivinharam — chorar, coisa que, embora silenciosamente e com discrição, estou fazendo precisamente agora. Desculpem, vocês não têm nada com isso e podem até querer de volta o dinheiro gasto com um jornal que permite alguém escrever sobre assunto tão pessoal. Certo, certo, é pessoal, mas Tom não era pessoal, Tom era — e é — patrimônio nacional, razão por que imagino que pelo menos um bocadinho ele interessará a todos vocês. Não li o livro do Ruy Castro sobre ele, mas vou ler. Assim que comprar uma nova caixa de lenços de papel.