Amanhã, como sabemos, termina este ano. E, como também sabemos, embora paradoxalmente, depois de amanhã não começa o ano-novo. Aliás, nutro o receio de que não haverá 2002 no Brasil. Lembremos que, normalmente, qualquer ano-novo, entre nós, só começa depois da Semana Santa. Mas, depois da Semana Santa, haverá a Copa do Mundo e, depois da Copa do Mundo, teremos eleições. A Copa, bem verdade, só ocupará o tempo anterior a ela, pois tudo indica que, ingressada nela, nossa briosa Seleção será despachada para casa depois de uma derrota de 5 a 1 contra a aguerrida equipe do Kozofiquistão Oriental, ou país semelhante — tudo culpa do juiz ladrão, é claro, para não falar que o Kozofiquistão cada vez mais se firma como uma potência no futebol.
Mas quem deve ganhar a Copa serão os japoneses, isto porque poderão substituir todos os jogadores a qualquer hora do jogo, pois ninguém vai distinguir um do outro. (Aliás, tenho algumas teses sobre os japoneses, perdoem-me a digressão. Não existe um japonês, só existem vários japoneses; ninguém entre vocês jamais viu um japonês, só se vêem vários japoneses, mas nunca um só japonês. E os jornais japoneses prosperam porque não gastam quase nada com arquivos fotográficos. Necrológio, por exemplo: basta perguntar se o falecido usava óculos ou não. Se usava, botam a foto de um japonês de óculos. Se não usava, botam a foto do sem óculos. Sei que acabo de ser politicamente incorretíssimo, no que creio ser a última vez este ano e peço desculpas antecipadas. Na verdade adoro os japoneses e já tive uma — na realidade, várias, em revezamento insustentável por um pobre ocidental mestiço — namorada japonesa.) Nossa performance na Copa será precedida por uma série estonteante de comentários terroristas, depois de, em amistosos preparatórios, perdermos para a Nicarágua, empatarmos com o Gabão e ganharmos da Libéria, assim mesmo porque o goleiro deles terá sido expulso, após reagir selvagemente contra uma dedada aplicada por um zagueiro nacional, na hora em que todo mundo vai para a área esperando a cobrança de um escanteio e o Felipão grita do lado do campo "dá uma dedada no subilatório desse cara pra ele não ir na bola!"
Para não falar que Rivaldo, após temporada triunfal no Barcelona, jogará o suficiente para sentar no banco de reservas da garbosa equipe da Catuense, Ronaldinho entrará em campo com febre, dente inchado e chuteiras Nike, Romário sentirá a virilha e a panturrilha e Cafu, com suas avançadas fulminantes, se enganará de lado e chutará fatalmente para o nosso próprio gol. Mas não descarto a possibilidade de ganharmos a Copa, depois que o governo, com medo de perder as eleições, oferecer, por força de medida provisória, todas as nossas reservas cambiais ao Banco de la Nación, da Argentina, em troca da naturalização de todos os titulares do time de nuestros hermanos e a conseqüente entrada deles, como brasileiros legítimos, na nossa representação ludopédica.
O carnaval, já que não haverá mesmo outro assunto (e a imprensa noticiosa se ocupará de dietas para o verão, novidades esotéricas em Brasília e reportagens sobre uma colônia de 18 alemães octogenários que até hoje só fala um dialeto bávaro desconhecido, ou sobre um quilombo encontrado no sertão de Pernambuco, onde o pessoal ainda não teve notícia da Abolição e só aceitará receber jornalistas tidos como brancos com a intervenção das Nações Unidas e de mais 18 velhos, desta vez negros do Benim, capazes de falar razoavelmente o dialeto preservado pelo quilombo), será o foco de todas as atenções. A Império Serrano virá botando pra ferver, a Mangueira terá uma comissão de frente extraordinária, o Salgueiro fará uma estrondosa recuperação, a Beija-Flor virá impossível e assim por diante, com o ganhador levando o prêmio por meio ponto, depois de virarem porrada a torto e a direito, na hora da abertura dos votos.
Na Bahia, que é muito mais adiantada nesse setor e carnaval é uma atividade empresarial séria, aparecerão diversos novos traseiros para gáudio nacional e todos pararão no Campo Grande para falar naquele público ma-ra-vi-lho-so que lota as arquibancadas e camarotes, com beijinhos jogados para o dr.
Antônio Carlos, o nosso ACM, que, aliás, vai ser o que quiser ser, depois das eleições baianas, inclusive Duque de Mar Grande, com direito a brasão e tudo mais. Os jornais cariocas vão ostentar crônicas gozando os baianos e os paulistas vão dar a maior força aos 244 conterrâneos que assistirão entusiasticamente a seu desfile de escolas de samba, a melhor das quais homenageando Adoniran Barbosa e outra levantando, sacudindo a poeira e dando a volta por cima, para não falar no trem das 11.
Já o panorama político é mais difícil de prever. A única coisa que se pode afirmar é que haverá renovação. Ou seja, as caras que aparecem desde 64 continuarão a aparecer, invertendo-se a ordem. Talvez tenhamos uma mulher como Presidente, mostrando aos países desenvolvidos como somos danados e avançados. Minha candidata favorita é d. Benedita, por preencher esplendidamente essas condições, sendo mulher, negra e favelada e, principalmente, esposa de um amigo meu, o que — quem sabe? — poderá me render um convite para almoçar no Palácio da Alvorada, onde tiraremos fotos descontraídas para a imprensa e diremos que desta vez o Brasil vai. Não vai, mas a gente diz do mesmo jeito, amigo é para essas coisas. E, mesmo que o Presidente (a Presidenta? discutam aí, filólogos) não seja mulher, pelo menos esperemos ter um presidente que fale português como língua de escolha, já que o atual, mostrando altivez e charme, fala em todas as línguas dos países que o recebem. Lembro que Haile Selassie, o extinto imperador da Etiópia, que não é assim propriamente uma grande potência, falava diversas línguas ocidentais, mas só parlamentava na língua dele, exigindo a presença de um intérprete. Nós não. Nós falamos as línguas dos patrões até melhor do que eles. Pensando bem, rejubilemo-nos: temos um ano-novo supimpa pela frente.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 30/12/2001.