Minha espertíssima agenda me comunica aqui que hoje é um dia em que temos muito a comemorar, mesmo levando esta vida airada de brasileiro, que todo dia está comemorando alguma coisa, povo festeiro que somos, alegre pela própria natureza e coberto de razões para celebrar em nosso berço esplêndido. Hoje é, entre outras coisas, dia mundial da saúde, dia do corretor, dia do médico-legista e, finalmente, dia do jornalismo. Acho que todas estas efemérides merecem uma palavrinha especial, por constituírem excelente oportunidade para reflexão sobre as benesses que se derramam sobre as nossas cabeças e, ingratamente, não agradecemos aos fados benfazejos, que nos tornam tão felizes.
Infelizmente, me faltam informações abalizadas para falar muito sobre alguns desses assuntos. Por exemplo, não entendo nada do ofício de corretor. Não sei se o dia de hoje também se aplica aos corretores imobiliários, mas imagino que sim, corretor é corretor. Eles devem estar tendo um vidão, dada a facilidade com que se constroem e vendem-se casas e apartamentos no Brasil. Está ao alcance de qualquer um procurar um corretor de confiança, devidamente credenciado e comprar uma casa a ser paga em módicas prestações. O fato de que, depois de pagar dez anos de prestações, o felizardo realizador do sonho da casa própria ainda tem mais a pagar do que o preço original do imóvel não deve empanar nossa alegria. Deixemos de olhar as coisas pelo lado negativo. Segundo me contam, por exemplo, o comprador está segurado. Se morrer, não deve mais nada, porque o seguro paga. Portanto, qual é a queixa? Se o sujeito constatar que não dá mais para pagar as prestações, basta se livrar da má vontade e dar uma morridinha, deixando uma família amparada, garantida e tendo onde cair morta também.
Se os outros corretores, como os da Bolsa de Valores, estiverem incluídos nos lembrados pelo dia de hoje, atentemos para como se dão bem, gerenciando recursos alheios e ganhando polpudas comissões, sem incorrer em riscos de espécie alguma. Claro, nem tudo é perfeito e o constante nervosismo do mercado, sobre o qual lemos fartamente em cada jornal que abrimos, há de cobrar seu preço sobre seus agentes, os corretores. Mas também aqui deve-se procurar o lado positivo. Nada que duas cartelas de Lexotan-6 diárias não resolvam, ou medicamento de igual uso cotidiano por todos os brasileiros. Pensemos, aliás, na indústria farmacêutica que, com os empregos gerados pela venda de tranqüilizantes e assemelhados aos corretores e seus correteados, mantém empregos e assegura os investimentos patrióticos feitos em pesquisas no setor.
O que, aliás, nos traz à mente as condições de saúde. A medicina brasileira é muito adiantada, tanto assim que quem se dispuser pode ir a São Paulo e medicar-se com alguns dos melhores profissionais do ramo. O próprio presidente da República faz isso e já aconselhou a todos os brasileiros que se submetessem a pelo menos um checape anual, ato ao alcance de qualquer um, assim como está ao alcance de qualquer um, se for o caso e imposição das altas responsabilidades de seu cargo, ir a Cleveland ou a algum outro centro de excelência médica americano, para obter o tratamento adequado. É só, como vemos nos comerciais de TV do governo, nos dirigirmos ao posto de saúde mais próximo, o SUS paga tudo, está na lei.
A situação é tão boa que chegamos a um certo relaxamento, quiçá compreensível, mas não justificável. Facilitamos tanto que hoje, apesar de nossa medicina ser tão adiantada, já detemos alguma espécie de recorde internacional em tuberculose, mortalidade infantil e quejandos, tudo por nossa mania de não procurarmos o posto de saúde mais próximo. E a oportunidade que damos ao mundo de estudar doenças como o dengue e a febre amarela, já de muito erradicadas dos países civilizados, a ponto de seus cientistas não disporem mais de pacientes a serem observados? Bem verdade que não merecemos todo o crédito, porque não fazemos isso com espírito de altruísmo e desprendimento, fazemos isso por via da descontração e da mania do jeitinho brasileiro.
A epidemia de dengue, como estamos cansados de saber, é culpa nossa. Num país sério, os cultivadores de bromélias já estariam em cana, bem como qualquer um que visse uma poça permanente e não comunicasse a ocorrência à companhia de águas e esgotos responsável. Basta discar um número disponível a todos, para elas acudirem imediatamente. Mas não, esse é o nosso defeito, o relaxamento. E assim jogamos sobre os ombros do operoso governo essa epidemia testemunha de nossa — vamos reconhecer — irresponsabilidade. Agora mesmo, vemos nos noticiários que tem gente que se recusa a permitir a entrada dos mata-mosquitos em suas casas, porque muitas já foram assaltadas por bandidos disfarçados de mata-mosquitos. Isso é desculpa? Ora, vamos e venhamos, que é um risco de assalto, em comparação aos riscos sanitários incorridos por toda a população? Isso pode redundar na inconcebível utilização da CPMF em programas emergenciais de saúde, coisa com a qual ela nunca teve a ver, obrigando o governo a fazer ginásticas financeiras inenarráveis.
Resta pouco espaço para as outras categorias homenageadas. Ficam para outra ocasião. Mas, para não melindrar ninguém, pensemos em como tantas famílias, seja de assassinados, seja de vítimas de acidentes causados pela vontade de Deus, hoje têm seu médico-legista de estimação, dando mais um motivo de orgulho a essa operosa e sobrecarregada categoria. Dificilmente, a não ser em casos extremos como o Afeganistão, haverá tantas oportunidades para legistas. E, last, not least , chegou a vez do jornalismo, que de fato é uma vergonha e deveria ser objeto de uma crônica especial. Além de sermos todos corruptos e comunistas ou nazistas disfarçados, ainda somos responsáveis por todas as poucas mazelas do Brasil. Vivemos denunciando escândalos, noticiando calamidades e pedindo providências. Ou seja, como qualquer político enrolado poderá asseverar, é tudo culpa da imprensa. Pensando bem, o jornalismo é que não merece homenagem nenhuma e vai ver até que a epidemia de dengue é também causada pelo sensacionalismo da imprensa. Fechar os jornais e abolir os noticiários resolveria tudo. Por que não pensamos em soluções simples?
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 07/04/2002.