Já falei neste assunto aqui e provavelmente repetirei com outras palavras o que já disse, mas acho que nunca é demais. O médico italiano que anunciou ter uma paciente grávida de um clone pode estar chutando, segundo alguns, mas também pode não estar, segundo outros. E, muito provavelmente, não vem ao caso, porque, mais cedo ou mais tarde, alguém estará agindo da mesma forma, se já não está, sem alardear.
Não se pode conter o progresso da ciência e nunca se conseguiu contê-lo, mesmo em tempos de rigorosa perseguição aos heréticos que pretendiam provar contradições científicas em relação à letra estrita da Bíblia. Se é teoricamente possível fazer alguma coisa, surgirá sempre alguém para tentar fazê-la, não tem jeito.
À primeira vista, muita gente dirá que os progressos na engenharia genética, bem como outros avanços do homem no controle sobre a Natureza, representarão um bem-vindo sopro de racionalidade na nossa evolução. Finalmente nos livraremos de caprichos originados dela, teremos controle sobre diversas doenças, seremos, enfim, mais donos de nosso próprio destino. Será? Em primeiro lugar, pergunto que racionalidade é essa, num mundo em que assistimos ao que acontece no Oriente Médio, num mundo onde o ódio, o preconceito e o apego a crenças e hábitos desarrazoados permanecem tão fortes, onde alguém é considerado superior ou inferior pela cor da pele, pela língua que fala e até pelos hábitos alimentares. Ouço muitas críticas à obra de Deus, que é o Universo, ainda indecifrável pela ciência. Isso vindo de gente que nem consegue organizar uma tabela de campeonato de futebol direito e quer dar palpite numa estrutura tão inimaginável como o cosmo, ou mesmo neste espirro de espirro de espirro de espirro (botem espirro nisso) de protozoário, que é a Terra em relação ao Universo
Não é preciso prever avanços mirabolantes para se ver o que pode acontecer. Basta ficar nos que já são concretos, tais como a possibilidade de escolher o sexo dos filhos. Maravilha, dirá alguém, agora ninguém vai ter de botar no mundo filho atrás de filho, na esperança de vir uma menininha, ou vice-versa. Nos países mais desenvolvidos, por exemplo, com certeza a escolha recairá sobre um casal, um menino e uma menina, em perfeita consonância com os desejos e fantasias dos pais. Sim. E as culturas onde ter um filho do sexo masculino é quase questão de honra, ou chega a sê-lo? Ou as culturas onde ter uma filha representa um prejuízo ao patrimônio da família, por questões de dote?
Imaginem um país como a China, onde cada casal pode ter apenas um filho e a preferência é pelo sexo masculino. Visualizo com pavor hordas de donzelões chineses invadindo os países circunvizinhos, na busca desenfreada de uma mulher, qualquer que ela seja. E, mesmo entre certas comunidades e regiões brasileiras, fenômeno semelhante poderia acontecer. Até negócios poderiam ser feitos, em áreas onde a liberdade de escolha matrimonial praticamente não existe: “Tudo bem, eu faço negócio com você. Digo a minha mulher que vamos ter uma filha para casar com seu filho, mas você me dispensa do dote. Aliás, pensando bem, você é quem pode me pagar um pequeno dote, coisa parcelada em prestações módicas, é negócio para você, senão seu filho não vai achar mulher mesmo."
Indo um pouco mais além, penso em controle demográfico feito pelo Estado. Para começar, seria necessário um requerimento de paternidade ou maternidade à repartição competente. Deferido o pedido, o beneficiado receberia a determinação do sexo da criança, baseado em projeções e metas, bem como as aptidões do futuro bebê. Num Brasil como o de hoje, quem fosse branco, rico e bonito teria preferência para profissões de elite e, assim, esse branco, rico e bonito poderia ter um filho com vocação para engenheiro, médico e assim por diante, enquanto quem fosse negro, feio e pobre teria de preencher as quotas de garis e limpadores de esgotos antecipadas para as próximas décadas. E o pior é que, além das distorções criadas pela influência (o PFL, por exemplo, romperia com o governo, se o filho de algum de seus membros eminentes recebesse aptidões consideradas inaceitáveis), outras viriam, inevitavelmente, do fato que seriam feitas por economistas, os quais, como é do conhecimento geral, sabem tudo quando estão fora do poder e não sabiam nada quando estavam nele.
A mesma inquietação, que tem inúmeros outros aspectos para os quais não disponho de espaço para abordar, se estende à possibilidade de o ser humano controlar, ainda que com uma certa imprecisão temporária, o meio-ambiente. Já pararam para pensar nisso? No Nordeste, prefeito que ficasse contra o governo ia ter de enfrentar uma seca que duraria todo o mandato, a não ser que renunciasse ou sofresse impeachment. Ou mesmo que o município não fosse no Nordeste — ia tudo acabar dando no mesmo. Vasco e Flamengo decidem o campeonato e ninguém quer chuva no dia do jogo. Favores trocados aqui e ali e o Governo quebra o cronograma de chuvas só para satisfazer as torcidas. Para não falar na criação da Agência Nacional da Meteorologia, encarregada de, sob a aprovação do Congresso Nacional, estabelecer o dito cronograma de chuvas. Ganha um doce quem prever com acerto que não secariam o Amazonas em coisa de dez ou quinze anos. Escândalos até no Jóquei, com chuva prevista para o dia em que corre um cavalo que ganha em raia pesada, beneficiando os que estão por dentro da jogada. Chuva no dia do casamento ao ar livre da filha de um ricaço desafeto do governo. As possibilidades são infindas.
E por aí iríamos. Não sou, não quero ser, nem posso ser, contra os avanços da ciência. Mas sou, como creio que também muitos de vocês, cético quanto à nossa espécie, tão bem dotada que se intitula de rainha da Criação, mas tão atrasada que chega a doer. E, por falar em atraso, claro que todos os instrumentos e toda a tecnologia proviriam das chamadas grandes potências. Quem pode garantir que não seríamos coletivamente escolhidos para garis e limpadores de esgotos do mundo? Já somos, de certa forma, quem quiser que se engane.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 14/04/2002.