“Querida Cláudia,
“Alô, amiga, tudo bem com você? Eu podia simplesmente telefonar, em vez de mandar este bilhete pelo Paulo Sérgio, mas é que o Rogério pode ouvir e aí sai briga na certa. Vai sair briga na certa hoje de qualquer maneira, mas o melhor é restringir as possibilidades. Quando ela sair, Rogério e eu vamos bater boca umas quatro horas e deixar de nos dar uma semana ou duas, mas tudo bem, faz parte, já estou acostumada.
“Não estranhe o Paulo Sérgio aparecer aí para te levar este pedido. E não estranhe ele estar acordado às 11 horas da manhã, fui eu mesma que o acordei e, assim mesmo, depois que ameacei cortar a mesada dele. Não sei a quem esse menino saiu. Bom, pensando bem, eu sei, saiu a ela, claro. Menino de 26 anos, mas menino, que, ao que tudo indica, nunca vai sair de casa, mesmo o pai oferecendo pagar o aluguel de um apartamento para ele. Ele encara como uma tortura medieval pendurar a toalha de banho depois de usada e deixar a cueca também usada em cima de qualquer lugar que lhe pareça um alvo cômodo, nunca vai abdicar desta moleza que é viver aqui em casa, comigo feito uma escrava neurótica, andando atrás dele para pegar até pontas de cigarro no carpete. Ultimamente, perdeu a cerimônia e traz as namoradas para dormir aqui em casa com ele, todas umas cafajestas, viciadas, ao que parece, em fazer ceias às quatro da manhã e lambuzar de manteiga até as torneiras da cozinha. Dava para comer como um biscoito, para quem tem boa dentadura.
“O que quero de você é coisa simples, mas pelo-amor-de-Deus, não me falhe neste transe doloroso que você já conhece e em que, aliás, nunca falhou, Deus a abençoe por mil gerações. Quer dizer, talvez não seja tão simples assim. Eu só queria pedir uns doze copos de cristal emprestados, duas travessas, preferencialmente de metal, para ela não aproveitar e esbarrar numa delas e espatifar tudo no chão. E aqueles trecos de madeira para servir saladas, que eu tenho, mas ela cheira e não usa. Não usaria os seus também, mas aí eu conto que tomei emprestado com outra pessoa e ela diz ‘logo vi’. Os copos não tem perigo, porque eu sei de uma loja aqui no Leblon mesmo que tem uns iguais, ela quebrando um ou dois eu substituo, sei que você confia em mim.
“E sei também que você não enfrenta esse problema, porque nem você nem o Soares têm sogra e acredito que somos a única família a ser lembrada o ano todo que hoje é o Dia da Sogra. Você é minha melhor amiga e sabe que tenho uma sogra especial. Você, felizarda, não estava nem aí, mas hoje é o Dia da Sogra. Eu queria saber quem foi o sacana do deputado ou vereador que instituiu esse dia, para mandar uns quindins de estricnina para ele, só pode ser um degenerado que na outra encarnação vai nascer numa sociedade polígama e ter 26 sogras, Deus é grande e saberá ver com bons olhos o meu pedido. A empregada folga nos domingos, é claro, e eu acabo de passar um pano em absolutamente tudo na casa, embora saiba que ela vai esfregar o dedo também em tudo, fazer uma cara horrorizada e perguntar se o aspirador de pó quebrou e se eu não conheço um bazarzinho aqui por perto que venda espanadores.
“Numa hora destas é que a gente vê como, em certas ocasiões, os amigos são muito mais solidários do que a família. O Paulo Sérgio só vai esperar o almoço, reclamar que a comida está sem sal (ela diz que, quando eu boto sal em quantidades decentes na comida, estou querendo matá-la da hipertensão e aí eu não boto praticamente sal nenhum, mas nunca adianta, como, aliás, nunca adianta nada) e se mandar, dizendo que vai estudar, embora eu saiba qual é o estudo dele — cala-te, boca, filho é filho, não vou contar que ele vai para a casa de algum amigo queimar um baseado por hora e infernar a vida dos vizinhos tocando guitarra elétrica. A Lucinha não suporta a avó, principalmente depois que botou um brinquinho no nariz e a velha fala que, se soubesse que ia ter uma neta canibal, não tinha casado, ela acha que todo mundo que fura o nariz é canibal. Aí a Lucinha acaba de almoçar, diz que está com TPM, que a velha diz que no tempo dela não tinha e que é frescura, e se tranca no quarto. Aliás, como lhe contei naquele dia, na casa da Valdete, ela vive fazendo insinuações sobre como teria sido melhor para o Rogério que ele tivesse ficado casado com a Ana Paula — aquilo, sim, era que era mulher de verdade, mas não sabe ela que Ana Paula já disse até a mim que largou o Rogério por causa dela. E o Antônio Marcos, que é meu filho, mas devo admitir que, já aos 16 anos, não tem nenhum caráter, fica puxando o saco dela o tempo todo e sempre descola uma graninha no fim do dia. Quanto ao Rogério, também sou obrigada a admitir que assume uma postura absolutamente imoral. Ela gosta de perfumes, mas sempre de algum que não se encontra aqui para comprar e eu, que tenho psicose de Dia da Sogra, fico telefonando para minhas amigas que fazem viagens internacionais, pedindo aos prantos que comprem um desses malditos frasquinhos de xixi de gringo no free shop do Galeão. E aí o Rogério, com o mais revoltante cinismo (tenho pensado muito no exemplo da Ana Paula ultimamente), pega o presente, diz que foi ele quem comprou, a besta aqui não desmente e ela tem uma crise de espirros alérgicos com as flores que ele comprou para ela e diz que fui eu.
“Não fique preocupada comigo, é só uma vez por ano, como você sabe. Passa rápido, inclusive o brinde que o Rogério sempre exige que eu faça, afirmando ter a melhor sogra do mundo. Você, que nunca militou na profissão mas é formada em direito, pode me informar se existe divórcio de sogra, ou pelo menos separação de corpos? Não deve existir, mas grande Ana Paula, grande exemplo de mulher. Muito obrigada por tudo, meu amor, principalmente pela paciência. Não quer vir para o almoço do Dia da Sogra, aqui em casa? Brincadeira, chiste, chiste, eu adoro você, não ia te fazer uma coisa dessas. Muito obrigada outra vez e ponha as mãos para o céu pela sua boa sorte. Beijos nervosíssimos da tua
“Beatriz.
“P.S. — Sim, e não mande daqueles copos coloridos, que ela pensa que são meus e diz que são coisa de gentinha. Meu consolo é que vou ser canonizada logo depois de meu enterro.”
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 28/04/2002.