“Querido Diário, ”Eu tenho minhas dúvidas. Quer dizer, sobre se sobrevivo a mais este Dia das Mães. Não, sem brincadeira, quem pensa que meu caso é moleza é uma felizarda, que não sabe as bênçãos que o destino joga sobre ela. Claro, o Fife — Festival Ipanemense das Flores Fedidas — já começou desde cedo. Não só fedidas como cheias de abelhinhas que pensam que meu cabelo também é flor e ficam zumbindo em redor de mim, numa iniciativa com certeza de Satanás, que quer me ver jogar tudo no vaso, como, aliás, sempre me dá vontade. Mas eu resistirei, apesar de ser difícil, embora a principal razão seja medo de entupir tudo e pagar a um encanador dois por cento do PIB pelo desentupimento. Veja aqui, isto veio com as camélias, ou que outro nome tenham estes bagulhos, da Débora Carmen, a poetisa da família:
“Mamãe, doce mamãe, tu podes não me ter trazido ao mundo,
“Mas é como se fora a mesma coisa. Para cada sentido, vejo em ti
“Um símbolo sublime. Para a visão, eis a paisagem
“De uma campina viçosa. Para a audição, teu riso argentino
“É mais música que Mozart. Para o olfato, o olor das flores
“Não se rivaliza ao perfume natural que, como diz outro poeta,
“As rosas furtam de ti. Para o paladar, és mais que um bom-bocado,
“És mais que o néctar e a ambrosia com que se alimentavam os
“Deuses olímpicos. És...
“CHEGA! Por que não sou sogra de qualquer mulher que não ela, não absolvendo as outras, longe disso, absolutamente qualquer mulher, inclusive a pior das que estão num presídio em Bangu? E riso argentino, riso argentino é, francamente, o que só não digo porque este é um diário de família, senão diria. E, se não me engano, até os versos do Cartola, que ela xinga chamando-o de ‘outro poeta’, ela transcreve errado.
“Mas, sim, tudo bem. Ela já sabe que eu não suporto nada do que ela escreve, embora não diga, só faça caras hipócritas, e tenha perfeita consciência de que ela me considera uma debilóide da pátria porque não a tenho em conta mais elevada do que Dante. E tudo estaria bem, se parasse por aí, inclusive o cabelo, que me deixa morta de raiva... (Pausa para mandar ver no spray de inseticida, o cheiro é bem melhor que o das flores. Tombam abelhas, como diria ela, qual pétalas de uma flor senescente — veja você, até esculhambando eu escrevo melhor do que ela.) Sim, tombam abelhas, que beleza, viva a multinacional que fabrica este negócio.
“Meu objetivo é, como sempre, falar na churrascaria, mas acho que, diante das circunstâncias, a churrascaria tem que ficar em plano secundário. Meu Deus do céu, é ano de eleição e ano de Copa do Mundo, por que padecer no paraíso tem que ser pior do que padecer no inferno mesmo? O Carlinhos é Flamengo, o Sérgio Artur é Vasco e romarista e vou ter que ficar escutando um debate interminável sobre como o Felipão é o macho dos machos ou o babaca dos babacas. Eu até que sou meio romarista, mas apoiar o Sérgio Artur na discussão envolveria Verinha de Carlinhos na briga, para não falar no dito Carlinhos, além de me render beijos de bigodes ensopados de chope azedo da parte do Sérgio e acho que preferia ser babada por um São Bernardo com glossite a receber esses beijos. Minha filha casou pela segunda vez, quer dizer, teve uma segunda chance e escolheu essa pérola para novo marido. E o Lula, e o Garotinho e o Ciro Gomes e o Serra (se não me engano, o slogan é “vamos serrar” — e depois a débil mental sou eu) e não sei mais quem? Eu quero que todos eles se... sim, sim, sim, este é um diário de família e sou uma senhora educada para todos os efeitos, menos para os meus mesmos, que nunca são levados em conta.
“E Ele? Vou contar qual é o presente d’Ele este ano. Você é meu diário e não se pode mentir ao próprio diário, embora todos acabem mentindo, inclusive, possivelmente, eu. Mas não vem ao caso, porque tudo se desvendará depois que Ele vier do boteco, gabando-se, o que nunca é verdade, mas é sempre repetido, de que saiu mais cedo porque hoje é meu dia, um dia especial. No caso presente, eu não estou mentindo mesmo. Se segure aí, para eu lhe dizer, eu sei qual é o meu presente há semanas, porque Ele sempre o esconde no mesmo lugar e eu sempre dou uma espiada, é claro. Se segure mesmo aí: meu presente este ano é uma furadeira. Isso mesmo, uma furadeira elétrica de última geração, como Ele vai me falar. Só porque eu fui cair na besteira de dizer que queria pendurar uns dois quadros em algum lugar diferente e seria bom ter uma furadeira em casa. Por que, minha Nossa Senhora, não tomei logo emprestada a furadeira de Seu Gomes, o vizinho do 404? A taxa de falha de meu anjo da guarda, Deus me perdoe, está provavelmente abaixo da do Gabão, por aí. Ele ficou felicíssimo e, naturalmente, vai tomar posse da furadeira, conforme o já previsto, quando eu disser que não tenho paciência para ler o manual e Ele disser que já me conhece, vai ler o manual e depois me ensinar tudo, coisa que eu nunca vou querer, nem Ele vai querer fazer — enfim, o ritual de todo ano.
“Muito bem. Já está chegando a Hora e é melhor parar por aqui, reconheço que não estou no melhor humor do mundo. Imagino que devo botar as mãos para o alto a agradecer aos fados, que me tornaram uma mulher feliz e, de certa forma, bem-sucedida. É, a gente vai ficando velha, vai baixando os padrões. Pior seria, pensando bem, ter nascido gabonesa, ou como lá se chame quem nasce no Gabão, e pobre, ainda por cima. Tudo bem, tudo bem, tudo bem! Mas não nego que me fascina a manchete ‘Pegou a Furadeira, Matou a Família e Foi ao Cinema’. Cala-te, boca, feliz Dia das Mães para nós, Querido Diário. Prometo firmemente que não levo você à churrascaria.”
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 12/05/2002.