Rotina de combate

(João Ubaldo Ribeiro)

— Atenção, todo mundo aí! É a quinta chamada, toque de mobilização! Um, dois, três, quatro, cinco! Prrriiii! Não estou vendo movimentação nenhuma, até parece que não treinamos esse tempo todo! Prrrriiii! Toque de mobilização! Quero ver todo mundo preparado!

— Calma, querido, esta casa também não é um quartel dos Fuzileiros Navais.

— Eu sei, mas devia ser. O serviço militar tinha que voltar a sério, tudo acampamento de infante, fuzileiro. Não, não é campo de fuzileiros? E o que é aquilo, aqueles traços luminosos passando por cima do morro?

— Sei lá, devem ser foguetes, o Flamengo deve ter ganho algum jogo.

— Você é uma alienada, mulher. É Flamengo e nem sabe que o Flamengo não jogou hoje e, se jogasse, ia perder. Tem nada de Flamengo, isto é bala, bala, entende? Bala tipo tracer bullet, daquelas que a gente via em filme de guerra antigamente. É para ajudar quem está atirando a ver se está atirando certo, tu não lembra que te expliquei, naquele tempo em que você me achava parecido com o Robert Wagner?

— Lembro, parece coisa de cinema mesmo. Vou dar uma espiada melhor.

— Você vai é sair daí! Não abra essa janela! Não gastei dois décimo-terceiros para instalar essas janelas de vidro blindado só para ver minha mulher tomar um tiro na cabeça, num sábado!

— Ah, que dizer que o importante não é o tiro na minha cabeça, é porque é sábado.

— Mulher, pelo amor de Deus, pára com esse tipo de frescura! São 23 anos de casado e...

— São 24 anos de casados.

— Sim, são 24 anos de casado e tudo bem. Se eu quisesse providenciar qualquer coisa, já tinha dado uns tiros em você...

— Ah, que dizer que...

— Minha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, valei-me nesta hora! Clotilde, eu nem tenho revólver, e você acha que...

— Mas, se tivesse...

— Ai, meu Bom Jesus de Pirapora...

— Mas você falou num sábado. Quer dizer que, se não fosse sábado, podia.

— Podia meleca nenhuma. Eu só quis dizer que, num sábado, noite de movimento, se alguém tomar um tiro, vai ser mais difícil encontrar socorro.

— Ninguém aqui vai tomar tiro.

— Se Deus quiser. Mas eu vou usar meu colete à prova de bala que o Eduardinho me deu. Aliás, só não deu outro a você porque você não quis. Ele é craque nisso, sabia?

— Mas eu vou usar esse monstrengo em cima de meu vestido? E você ainda pergunta por aquela peruca loura blindada que você descolou não sei onde? Aquilo, além de horrendo, pesa uns dez quilos.

— Frescura, frescura. Não usa porque gosta de arriscar a vida, acha que nada te atinge..

— Não uso porque não se usa.

— Não se usa, mas, se a Giselle Bundja usasse, você usava. Pois eu vou usar o colete e o capacete. Chegar na festa, eu tiro, sair da festa eu boto. Mas já estamos perdendo tempo demais com isso. Laurimar! Mariul! Todo mundo pronto aí?

— Não estou achando a xerox da carteira de identidade.

— Minha filha, você vive perdendo essa xerox. Pelo menos ache o original.

— Este tá aqui, eu nunca perco. Mas é que a polícia só aceita xerox. Quando eu mostro o original, eles ficam desconfiados.

— Você já uma vestibulanda e não sabe das coisas, minha filha?

— Eu li no jornal que eles recomendam o uso de xerox.

— Isso é no jornal. Uma coisa é o jornal, outra coisa é a vida. E onde é que vai ficar o deles?

— Mas eles sempre exigem o original e, quando você diz que leu no jornal que não, eles dizem que no jornal sai tudo errado.

— Bem, dá tudo no mesmo, mas aí já é outro problema. O salto esquerdo já está abastecido?

— Ih, eu tinha esquecido!

— É o da grana do guarda! Nunca esqueça, é o salto do sapato esquerdo. O do assaltante é o da direita. Isso em último caso, porque, se ele não estiver com pressa, basta dar o da bolsa mesmo. E você, Mariul, tudo em cima? Cartão de crédito entre a meia e o sapato? Não esqueceu de usar o bolso falso da cueca?

— Tudo em cima.

— Então, querida, então vamos para a melhor noite do mundo, a noite do Rio de Janeiro! Os gringos morrem de inveja dessa beleza toda, desse relaxamento, desse balacobaco que só o Rio tem! Já chamou o táxi blindado? Não chamou. Eu chamo. Eu sou o único que tem de lembrar as coisas nesta casa: espiar a portaria antes de sair, só sair se o táxi blindado chegar, tudo eu, eu! Já não basta o vexame de que a gente vai chamar o táxi só pra ir na casa do Chico, ali em frente?

— Se você quiser, eu pego o carro e nós vamos.

— Você tá maluca? Sair dirigindo de noite aqui? Olhe aí o táxi. Boa-noite, companheiro, a blindagem é garantida?