É bem possível que as coisas, basicamente, sempre tenham sido como são agora, ou seja, não se podia, nem se pode, acreditar em nada ou ninguém. Todavia, a massa enorme de informações que nos invade de tudo quanto é lado, a ausência de privacidade propiciada pela tecnologia e movida pela bisbilhotice, a complexidade entontecedora de governos e empresas (aliás, corporações, como se diz em brasileirês contemporâneo) e, enfim, tudo o que nos cerca realmente dão a impressão de que antigamente se podia confiar em algumas coisas, enquanto hoje não se pode confiar em mais nada. Não tenho certeza, mas acho que hoje parece pior.
Começo, porque é mais fácil, pelos políticos. Se interrogados cuidadosamente, é possível que alguns brasileiros admitam que há exceções entre os políticos e alguns destes são honestos e verdadeiramente dedicados à coisa pública. Estou entre os dois ou três da ínfima população que acredita que esses políticos constituem até a maioria, embora vão ser maioria silenciosa assim em caixa-pregos, porque a verdade é que não se passa um instante sem que um novo escândalo seja apontado, dos coletivos, como os horários de trabalho do Congresso, aos individuais, como as falcatruas e delinqüências que a toda hora estão botando as manguinhas de fora.
Há algo em relação aos políticos que intriga todo mundo. Tem intrigado tanto que até já se deixou de falar no assunto como se costumava falar. Não existe político que não se queixe dos tremendos sacrifícios que suas funções requerem. Só mesmo um altruísmo beirando a santidade ou alguma espécie de obsessão divinamente inspirada é o que os faz persistir. Isto porque ninguém quer largar o osso. Ameaçam-se o casamento, a família, as finanças, a saúde física, o equilíbrio mental e tudo mais que se possa imaginar, mas o político não desiste da carreira, mesmo quando derrotado nas urnas. Que mistério é esse? De onde surge casta tão beatífica? Como é possível trabalhar mais de 18 horas por dia, brigar com a mulher e os filhos, ter ameaças de enfarte ou derrame, viver tomando tranqüilizantes, ganhar ridiculamente mal e, ainda assim, não querer sair do poder de jeito nenhum?
A conclusão só pode ser de que eles são melhores mesmo do que nós, o povo. Até nessa questão financeira, embora eles vivam aumentando seus vencimentos e salários, além de os cevarem com dezenas de pagamentos extras, originados desde morar na Barra da Tijuca e trabalhar no Centro até passar um fim de semana em Brasília ou haver uma vez experimentado uma boina do Exército (tempo extra de serviço militar), a gente não pode deixar de ficar de queixo caído. O que o sujeito gasta para se eleger não pode, nem de muitíssimo longe, ser coberto pelo que ele vai ganhar. Candidata-se ele, portanto, para endividar-se. Há os desconfiados que dizem que eles pagam as dívidas a quem lhes deu o dinheiro na forma da defesa de interesses ou roubo mesmo, mas isso deve ser maledicência. O fato é que gastam por espírito de sacrifício e a circunstância de a maioria comprar fazendas e mansões, viajar a torto e a direito e engordar (o poder engorda, com a notória exceção provocada pela solitária do dr. Maciel, vocês já repararam?) deve ser atribuído novamente à generosidade divina, que até faz com que alguns ganhem toda semana na loteria.
O ceticismo induzido no povo por esse fato se estende a todas as outras áreas. O noticiário de tevê anuncia que tal remédio baixou de preço e quem vai comprá-lo encontra um preço maior. E, mais estranho ainda, volta e meia descobre-se que um remédio ou outro, geralmente vital para quem o toma, não traz a dosagem terapeuticamente eficiente e anunciada na bula. Ou não traz nem o remédio, oferecendo quiçá farinha de trigo encapsulada. Mentirão os laboratórios e a fiscalização federal? Não, não é possível, assim como não é possível que a gente leia que a inflação baixou e verifique que a conta do supermercado aumenta a cada semana. Todo dia, tudo aumenta de cinco por cento para cima e a inflação somente uns pontinhos percentuais. Deve ser culpa da imprensa, como, aliás, quase tudo, se se for ver bem.
As grandes empresas multinacionais fazem propaganda por todas as vias imagináveis, suas ações e, conseqüentemente, seus ativos sobem de maneira espetacular e aí se descobre que os balanços eram adulterados e critérios desonestos empregados, para elaborar tais balanços. É possível acreditar nisso? Não é possível. Ninguém com tamanha responsabilidade chegaria a esse ponto. Além disso, outras firmas gigantescas, especializadas em auditorias financeiras, deram legitimidade aos balanços falsificados. Como é possível que isso haja acontecido? Não, de novo não é possível, o dedinho malevolente da imprensa deve estar metido nisso outra vez.
As empresas de serviços públicos, sempre anunciando que nós somos sua prioridade, muitas vezes não nos atendem (mas nos deixam cobertos de musiquinhas e declarações de amor gravadas), para um trabalho trivial, durante meses. Entretanto, seus anúncios mostram como são dedicadas e eficientes e como não poupam esforços para nos prestar atendimento cada vez mais barato e competente. A mesma coisa há que dizer-se dos planos de saúde. Nenhum brasileiro, para começar, precisa realmente de seguro-saúde privado e está aí o SUS para demonstrar. Mas, como é um povo mimado e metido a besta, faz planos de saúde, talvez só pelo gostinho de falar mal deles e se queixar de mau atendimento. Agora, admite-se que empresas de setor tão básico quanto a saúde, sob a fiscalização do Ministério da Saúde e dos conselhos de Medicina, tratem mal seus segurados, façam falsas promessas e cometam atos semelhantes? Claro que não.
Se formos por esse caminho, acabamos não tendo mais nada em que acreditar, situação insuportável para qualquer indivíduo. Isso mesmo falei a um amigo, outro dia. Graças a Deus, as coisas não são bem assim, não podem ser, graças a nosso Deus — disse eu.
— Eu não acredito em brasileiro — respondeu ele.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 21/07/2002.