Já falei neste assunto aqui diversas vezes, não adianta falar mais, porém falo de qualquer jeito. Quem quer que lide com computadores sabe que, pelo menos no estágio atual da informática, eles não são de confiança. Devo estar errado, porque não é admissível que máquinas tenham problemas de personalidade, venetas, caprichos e semelhantes atributos dos homens e de alguns animais complexos, como cachorros e chimpanzés. Mas a experiência desmente a opinião racional e os que convivem com computadores muitas vezes se resignam às “manias” de suas máquinas, desistem de superá-las e aprendem truques para contorná-las. É comum ouvir micreiros falar nesses truques e eu mesmo sei diversos, mais fáceis de aplicar do que ficar na companhia perplexa de um técnico que não atina com o que o miserável do computador insiste em fazer ou exigir.
Disponho da atenção desvelada de Izabel Camilo, minha personal trainer cibernética, e conto com a assistência eventual de muita gente boa nesse terreno. Pois já ouvi de todos eles, em várias ocasiões, afirmações como “esse bicho está tendo uma crise de frescura, desligue, ligue e não esqueça de xingar, que isso passa”. Meu amigo B. Piropo que, apesar de seus protestos veementes, considero a maior autoridade mundial no assunto, já passou dias aqui em casa, na companhia de Izabel, para desvendar, sem conseguir, as perversões de meu antigo Compaq, hoje rebaixado e abandonado sem saudades. Um vez ele deu um treco que durou semanas. Não era vírus (sou um imunologista competente nessa área), não era bug do sistema operacional ou de algum programa. Era simplesmente um mistério, que permanece insondável até hoje (a Compaq, justiça seja feita, se ofereceu para me ajudar, mas eu já tinha enchido o saco) e que foi contornado por piruetas virtuosísticas dos dois dedicadíssimos, competentes e sofredores componentes de minha equipe de salvamento. Resolver mesmo o problema em si, nós não conseguimos, mas eles acabaram achando um jeito de driblá-lo. Enganar, sim; vencer, nunca.
Nós, com o eterno complexo de inferioridade que nos faz sentir vergonha da própria língua (se bem que, do jeito que as coisas vão, ainda chegaremos a ter razão nesse ponto), até que tentamos botar banca em cima dos Estados Unidos, depois que houve aquele problema com as eleições presidenciais americanas, achando que somos senhores do melhor sistema de votação do mundo. Afinal de contas, nossas eleições agora são “por computador”, palavras mágicas que nos convencem de que algo é melhor por não ter sido produto do pensamento humano, mas do “cérebro eletrônico”, nome pré-histórico do computador. “Bilhetes preenchidos por computador”, ou “corte de cabelos orientado por computador”, o que faria qualquer micreiro ganhar toda semana na loteria ou tornaria qualquer pessoa um cabeleireiro competente.
Na verdade, a única coisa que conseguimos com passo tecnológico tão inovador foi tornar os nossos votos voláteis, virtuais e inconferíveis. Muita gente, inclusive técnicos e professores de renome, denunciou possibilidades sérias de falhas ou fraudes nesse sistema — tanto assim que muitos dos países do invejadíssimo Primeiro Mundo já vêm estudando a possibilidade de informatizar suas eleições há bastante tempo, mas até agora preferem o bom e velho papel, ou, no máximo, máquinas de votar que não são computadores, mas uma espécie de máquina registradora mecânica. Ignoramos todas as advertências e fomos em frente. Agora mesmo, alguém que esteja lendo estas mal traçadas pode ficar dando risada e me chamando de paranóico danoso da mídia, ou qualquer coisa assim.
Pois que seja. Não vou esquecer as críticas de técnicos e cientistas sobre nosso processo eleitoral, mas estou pronto a não discutir e reconhecer que sou chegado a uma paranoiazinha. Vamos dizer que o sistema seja à prova de erros (o que, aliás, quereria dizer que também não burlam sistemas de computação nos bancos e não invadem até mesmo os sistemas do Pentágono), o que é uma patente enrolação. Pode ser difícil burlar o sistema, mas impossível não é, não pode ser. Mas vamos concordar em que, até evidência em contrário, seja mesmo à prova de fraudes.
Contudo, onde estamos? Estamos no nosso imenso Brasil, onde um líder político de estatura nacional é obrigado a negar denúncias de manter escravos em fazenda sua, onde bancos de porte não pagam Imposto de Renda, onde há Detrans que vendem carteiras de motorista a cegos, onde a votação do Senado Federal é violada ou adulterada. E que achamos, em nosso imenso Brasil, mais precisamente na capital? Achamos urnas eletrônicas falsificadas. A explicação, um sopapo na inteligência de qualquer um, é a de que, num esforço cívico sem precedentes, organizações em Brasília estariam sendo usadas para ensinar eleitores menos esclarecidos a lidar com as máquinas. Então, tá. É tudo com fins didáticos e patrióticos, estão gastando dinheiro pela pátria, são uns altruístas sem par. Foram encontradas, em Brasília, cinco urnas prontinhas para serem usadas. Cinco já seriam suficientes para o meritório esforço didático. Mas aí encontraram, também em Brasília, material para a montagem de mais oitenta urnas.
Enfim, sabe-se lá se estaremos realmente manifestando nossa vontade, através do voto virtual, ou ele será canalizado para outros candidatos? Não sabemos. Nunca saberemos. A não ser se houver alguma denúncia anônima, método sherlockiano de investigação preferencial no Brasil — só perdendo para porrada na delegacia de polícia —, e essa denúncia for apurada. Eu, como todos vocês, não quero que as eleições sejam fraudadas, quero que ganhe quem o povo escolher. Mas o povo vai escolher mesmo? Há história mais mal contadinha do que essa das urnas falsificadas? Diante dela, a alegação do ex-deputado João Alves, segundo a qual ganhou muito dinheiro aplicando nas loterias, parece mais razoável, ou ao menos tanto quanto. Votemos eletronicamente, sejamos desenvolvidos. Mas vamos nos benzer quando olharmos para a maquineta, na esperança de que, sendo brasileiro, o Senhor Bom Deus não deixe que haja fraudes. Só Deus mesmo.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 15/09/2002.