Posso estar enganado, mas eu, que já passei quase dois anos do sessentinha, nunca vi disso, nem quando Jânio ganhou a eleição e fez seguidores fanáticos no Brasil todo, cada cidade contando com pelo menos um sujeito que era a cara do Jânio Quadros, queria ser a cara dele e o imitava em tudo. Em Salvador, havia uns dois, um dos quais até me cumprimentava, passeando de um lado para o outro na Praça Tomé de Souza, com um ar tresloucado, as melenas escorridas pelos lados da testa, os óculos na ponta do nariz, a gravata e o paletó tortos, vassourinha na lapela — tudo, enfim.
Ele era Jânio Quadros.
Mas isso nem se compara ao que se passa agora, depois da eleição de Lula. Às vezes, tentando um distanciamento que sei impossível, fico imaginando que a classe média com que convivo está assim excitadamente ambivalente, como uma criança que torce para que sua travessura traga prazer e não problemas. E ouço gente que até votou nele, mas volta e meia não consegue sopitar uma referência à sua "falta de preparo" ("erros" de português) e semelhantes atributos. (Harry Truman, um dos presidentes mais afirmativos da História americana, era dono de uma loja de adereços masculinos falida, numa cidadezinha do Missouri. Quando Roosevelt morreu e ele teve de assumir, sofreu um enorme cagaço durante uma noite e depois virou quem virou, a guerra fria que o conte.) O assanhamento é geral e, dos jornais aos papos de boteco, das tevês à internet, já se deve ter produzido, somente da eleição de Lula para cá, mais material do que, por exemplo, todo o governo Dutra, no tempo da manivela (tudo, carro, telefone, toca-discos, máquina registradora, máquina de lavar — o rolo de espremer a roupa —, tudo tinha manivela).
Não, não é só porque a transmissão e o acúmulo de dados são astronomicamente maiores do que no tempo da manivela, é porque parece ter havido algo diferente nessa eleição. Sim, claro que houve, mas não sei bem o que seria de fato importante. A ascensão social e política de um pau-de-arara mostraria como, a despeito de tudo, somos um país onde quem tem competência, denodo e força de vontade pode chegar a limites insuspeitados. Será só isso?
Acho que não. Não consigo botar o dedo no fator desse clima em que agora imergimos. Certamente é porque não se trata de um só fator, mas de uma combinação difícil de dissecar. A verdade é que há um assanhamento e, mesmo que ainda estivéssemos no tempo da manivela, ele seria notável, seria o maior já visto. Às vezes, no decorrer de um dia, tenho a impressão de que está todo mundo discutindo o governo Lula. Sim, porque, para os discutidores, o governo Lula já começou. Faz-se a ressalva retórica de que ele ainda nem tomou posse e passa-se a uma análise apaixonada da situação nacional sob o governo dele.
Nada escapa, como a constatação de que ele usava uma estrela do PT na lapela, ao encontrar-se com Bush, que, para grande vergonha nossa, exibia, se bem me lembro, uma bandeira americana, também na lapela. Caso de alta relevância. Lula não era, nem ainda é, o presidente do Brasil. É o líder mais importante do partido que ele construiu e que, descontadas análises políticas altissonantes e obnubilantes, o levou ao posto que ele ocupará dentro de poucos dias. Mas, na falta de ter o que criticar e não havendo Lula tentado falar inglês, a estrela da lapela já constituiu matéria para discussões, artigos, cartas e palestras. Entretanto, pensem bem, aqui entre nós: será que a vanglória discreta da estrela na lapela não foi apropriada para um encontro como aquele? Eu acho, e não sou do PT, não sou de partido nenhum.
E já assisti a arranca-rabos homéricos, por exemplo, sobre o ministro Gil.
Até eu, que quase nunca o vejo pessoalmente, mas o conheço desde o tempo remoto em que ele era estudante na Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (e eu era professor, não contem a ninguém), já me meti em discussões, embora deteste discutir. Mas sou baiano e, segundo um debatedor de boteco algo hiperbólico, "um titã da cultura" — e aí não me deixam ficar fora dos debates. E, reconheço, reconheço, já fiz críticas à escolha de Gil.
Apesar da pouca convivência, sempre gostei dele, nossos santos se dão bem, como se diz, mais ou menos, em nossa terra. Por isso mesmo é que sou contra ele no ministério. Não vai funcionar direito e isso não é agouro, é previsão com enorme chance de acerto. O fato de Gil ser artista não quer dizer nada, nesse caso. Einstein provavelmente traria o caos, administrando o Departamento de Física de uma instituição qualquer. Esse negócio de achar que só um especialista na matéria pode administrar determinadas áreas é bobagem. Grandes médicos podem ser péssimos administradores de clínicas ou secretarias de saúde, o mesmo acontecendo com grandes engenheiros, advogados e assim por diante. Os talentos são diferentes. Podem coincidir no mesmo indivíduo, mas geralmente não coincidem.
E Gil talvez haja sido inábil, quando falou nos 8.000 que não davam para ele, assim ensejando declarar-se hipocrisia geral. Com que então ele ousava dizer que, num país de miseráveis, não pode viver com 8.000? Claro que todo mundo está careca de saber que Gil é um artista, sim, mas as circunstâncias o levaram a também ser uma empresa, muito para além do nível familiar, com uma porção de gente dependendo dele, de músicos a boys. E aí vai ficar o ministro Gil, segundo diz aqui na gazeta, dando uns shows nos fins de semana, com a galera gritando "Realce, Excelência!"? E como é que o ministro da Cultura vai ser patrocinado? Como é que ele vai bolar shows, ensaiar shows e gravar discos? Como é que um artista necessariamente ocupadíssimo em sua seara vai poder dedicar tempo integral ao Ministério da Cultura, que todo mundo sabe que está precisando, entre muitas outras coisas, de um dia de 48 horas? Gil ser ministro é como um amor e uma cabana — só dá certo em fim de filme americano antigo. Mas há que aceitar-se que cada qual seja como cada qual e, claro, torço por ele. Agora, quanto a outros aspectos do governo Lula, não sei bem; só sei que, quase no dia da posse, ainda não vimos nenhuma realização concreta. (Atenção, leitores, este último período é ironia; o Millôr, o Verissimo e a vida me têm mostrado como é preciso ter o cuidado de fazer este lembrete.)
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 29/12/2002.